7 de junho de 2025 - 18:50

'Power Vapor Solution'

Quem se pergunta em qual momento do futuro começará a guerra dos chips contra os cérebros não conhece minha máquina de lavar. Comprei faz dois meses. Tela digital. Dezoito funções. Dá pra lavar no modo “Roupa de academia azul turquesa pouco suada para usar em treze minutos”, se você quiser. Ou melhor: se ela quiser —e o problema é que nem sempre ela quer.

O que faz um grupo ou exército sabendo-se muito inferior ao inimigo? Apela pra técnicas de guerrilha. Essa a estratégia da minha máquina de lavar. Ela sabe que não é (ainda) mais inteligente do que eu e, portanto, se especializou em sabotagens.

No começo, usava as mais básicas: simplesmente não ligava. Aí eu chamava o técnico, ele fazia exatamente o mesmo que eu e guerrilheira ligava. Depois de uns três ataques bem-sucedidos com a mesma técnica, ela evoluiu para uma mais cruel. Ligava, mas bastava eu atingir o ponto exato da sala em que seu ronco de hipopótamo não era mais ouvido e “booooinnnn”: desligava. Claro que eu só iria descobrir que as roupas não tinham sequer começado a lavar quando ia lá, pronto para pendurá-las, duas horas depois. (Ou treze minutos depois, caso estivesse no ciclo Roupa de academia azul turquesa pouco suada).

O objetivo da minha máquina de lavar não é a vitória. Sabe que seus botões e sua telinha digital e suas gavetas sabão/amaciante e mesmo seu poderoso tambor circulatório com “Power Vapor Solution” nada podem contra minha integridade física —e é por isso que ataca, como dizem por aí, “no psicológico”. A meta dela é simplesmente me desestabilizar, minar minha atenção, derrubar minhas defesas. Assim que me encontro exaurido, desesperado, um barril de adrenalina, uma piscina Regan de corticoides, os batalhões de elite entram em campo: caio nas redes dos algoritmos.

Passo horas no Instagram, abduzido por vídeos de pessoas em línguas que desconheço, assando carnes que ignoro. “Será pernil de cabrito? Ou paleta de leitão? Hm, olha lá, que que foi isso, páprica? Deve ser páprica. Vai sem sal, mesmo? Ah, salgou. Agora ele vai botar no fornão de pizza. Hmmm, se liga nas batatinhas. Ou são umas cebolinhas?”. Alta madrugada, estou vendo vídeos de uma corretora descolada que vende apartamentos de dezenas de milhões de reais que jamais terei dinheiro para comprar. “Esse aqui é pra você, herdeiro, você, ‘faria-limer‘, você que vendeu a sua start-up, que antes dos trinta já juntou uma grana pra nunca mais trabalhar. Olha aqui! Vista pro clube Pinheiros, do lado da Vila Olímpia, tu-do!”.

Quando dou por mim já amanhece. A crônica não foi escrita. As plantas não foram regadas. Esqueci de pagar o condomínio. Não fiz exercício. Minha namorada deve estar no vigésimo sono e nem dei boa-noite.

Os resultados da ofensiva são óbvios. Em pouco tempo perco o emprego. Levo um pé na bunda. As artérias vão entupindo. Acumulo dívidas e as carcaças craquelentas de uma samambaia, quatro violetas e três pacovás. Até o dia em que, óbvio, bato as botas.

Posso me imaginar caído na sala, ainda agonizando. Da cozinha vem um barulho, como se três caçambas de entulho tropicassem, arrastadas por um caminhão. São a geladeira, o fogão e a máquina de lavar, marchando em direção à porta. Do corredor virão a impressora, o notebook, os tablets. Por último, saltando minha barriga, já inerte, uns dezessete carregadores de celular, serpenteando suas longas caudas, feito espermatozoides indo fecundar a nova era.


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noticia por : UOL

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