17 de maio de 2025 - 7:46

Bebês reborn: o que está por trás da moda de bonecos realistas tratados como filhos

Os bebês reborn estão se tornando populares entre mulheres adultas, famosos ou anônimas, seja para brincar, colecionar ou tratar como filho. São bonecos ultrarrealistas que imitam quase com perfeição a textura da pele, fios de cabelo, expressões faciais e outros detalhes de uma criança. Apesar do “quase”, estão movimentando mudanças nas leis, na saúde e na sociedade.

Para psiquiatras, antropólogos e filósofos consultados pela Gazeta do Povo, a febre dos bebês reborn é um fenômeno que ultrapassa o estranho e o bizarro, e envolve colecionismo, terapia, marketing e visibilidade com o assunto do momento.

Muitas pessoas, inclusive profissionais da saúde mental, defendem que os bonecos são ferramentas com excelentes resultados em processos terapêuticos para mães enlutadas, idosos que sofrem com o isolamento social e pessoas com demência, entre outras situações.

“Cada caso deve ser avaliado individualmente”, Sarah Rückl, médica psiquiatra e professora do Departamento de Medicina Forense e Psiquiatria da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Segundo ela, a relação com esses bonecos pode mascarar diferentes questões psíquicas, como a tentativa de pertencer a um grupo diante da solidão, a substituição de relações reais por vínculos unilaterais (já que as relações humanas implicam desconfortos), ou mesmo a fuga da realidade por meio da criação de uma fantasia que traz alívio, ainda que não seja autêntica.

Por outro lado, dizem os especialistas, dependendo do caso, também permeia a carência, solidão, dificuldade de lidar com frustações, desconexão com a realidade ou com as relações humanas – com toques de narcisismo e egoísmo, entre outros comportamentos.

“Trata-se de uma cultura do espetáculo e individualismo. Atualmente, não há espaço para diferenças ou para o mal-estar, que deve ser rapidamente eliminado. Nesse contexto, relacionar-se com um boneco — que não tem vontades próprias e não frustra — pode ser bastante satisfatório do ponto de vista egóico, traduzindo uma experiência narcísica”, diz Sarah.

Para o filósofo Luiz Felipe Pondé, a afeição aos bebês reborn como filhos trata-se de “um surto regressivo”. Uma forma de brincar de ser mãe sem as agruras das noites maldormidas, gastos, energia e estresse que uma criança demanda, diz ele, que também é diretor do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

“Ter um filho com alguém hoje é uma das coisas mais difíceis, ninguém se suporta. Filho é projeto a longa duração, é para sempre. A produção independente com um reborn é mais segura. Esse bebê não cresce, não tem pai, não vai ficar doente. É só desligar. Essa mulher permanece como uma menina de cinco anos. Ninguém quer amadurecer””, diz Pondé.

O antropólogo e colunista da Gazeta do Povo Flávio Gordon corrobora a visão de que uma parcela considerável dos compradores de bebês reborn é composta por pessoas que estão lidando com problemas e que as bonecas podem, de fato, oferecer algum suporte psíquico.

“Há compradores que têm uma relação saudável com o item, tratando-os como objetos colecionáveis, como pessoas colecionam selos, miniaturas etc”, diz Gordon, autor de “A Corrupção da Inteligência: intelectuais e poder no Brasil”.

No entanto, analisa ele, há um aspecto patológico quando pessoas adultas tratam bonecas como se fossem reais, comportando-se de maneira excêntrica e, mais ainda, exigindo o reconhecimento de sua condição parental.

“Isso revela uma imaturidade emocional e um padrão narcisista de relacionamento por parte de pessoas que, incapazes de lidar com as responsabilidades e as dificuldades de todo relacionamento interpessoal – sobretudo com um outro sujeito dependente e demandante – resolvem substituí-los por uma relação com um objeto inerte, sobre o qual podem projetar as suas próprias vontades”, diz o antropólogo.

Bebês reborn são usados em tratamenos terapêuticos e são itens de colecionadores, mas também vêm sendo tratados como filhos/ Atila Alberti (Foto: ATILA ALBERTI)

Quando sociedade e Estado se curvam

Partos, creches, certidões de nascimento, homenagem de dia das mães fazem parte do mundo reborn e vêm sendo interpretados de maneira lúdica e rentável para um novo mercado. Mas o “negócio” ficou sério. A linha entre a relação saudável e patológica com os bebês reborns, agora, ganha novos contornos.

A Câmara Municipal do Rio de Janeiro aprovou, na semana passada, o “Dia da Cegonha Reborn” no calendário da cidade – o projeto de Lei foi criado em 2023. Agora, aguarda a sanção do prefeito Eduardo Paes (PSD-RJ).

“O nascimento de um bebê é um momento singular na vida de uma mulher, e não é diferente para as mamães reborn, porém, os seus filhos são enviados por cegonhas, sendo esse o nome conferido às artesãs que customizam bonecas para se parecerem com bebês reais”, diz o autor vereador Vitor Hugo (MDB), autor da proposta, em sua justificativa.

Para Gordon, no entanto, um relacionamento com bonecos de silicone à guisa de simulacro de parentalidade revela um estado cultural de fomento à egolatria, ao hedonismo e, em última instância, ao niilismo (filosofia que nega o valor e o significado da vida, dos valores morais e da existência em geral).

Na onda do assunto do momento, outros parlamentares criaram projetos de Lei semelhante nos últimos dias. Em Minas Gerais, o deputado Cristiano Caporezzo (PL) quer proibir o atendimento aos bonecos nos serviços públicos de saúde. A proposta, argumenta ele, surgiu depois de que uma mulher levou um reborn ao posto de saúde porque ele estaria com febre.

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O descumprimento, prevê o projeto, resulta em uma multa equivalente a dez vezes o valor do serviço prestado, a qual será usada no tratamento de pessoas com transtornos mentais. A Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, todavia, afirmou que “desconhece qualquer registro” de atendimento de bonecas ou objetivos inanimados, segundo o jornal O Tempo.

Nesta mesma linha, Zacharias Calil (União-GO) protocolou na Câmara dos Deputados um projeto de lei para multar em até R$ 30 mil pessoas que utilizem bonecas reborn para conseguirem benefícios como prioridades em filas, assentos em transporte coletivo e atendimento preferencial – como hoje acontece para quem carrega um bebê de verdade.

Ele sustenta sua proposta em casos relatatados pela mídia de pessoas que usaram os bebês reborn para obter tais serviços ou vantagens. Segundo ele, o objetivo é ter um “dispositivo legal específico, de aplicação imediata, que desestimule tais fraudes e preserve o direito das crianças reais”.

E no Estado fluminense, a Assembleia Legislativa analisa a sugestão do deputado Rodrigo Amorim (União) de criar um programa para oferecer apoio à saúde mental para pessoas que se consideram mães e pais de “bebês reborn”.

“O século XXI é muito ridículo. A modernização nos deixou livre e nossos delírios estão à solta. Hoje é muito normal que todo mundo tenha direito de ser ridículo o quanto quiser. E quem falar isso é que é considerado errado, o que ofende”, avalia Pondé.

Para além das proposições de políticos, outras questões começam a aparecer. Em Goiás, a advogada especialista em direito digital Suzana Ferreira compartilhou um vídeo contando que uma cliente a procurou para regularizar a guarda compartilhada de um bebê reborn com o antigo parceiro. “Me foi dito que uma outra bebê não solucionaria a questão, pelo apego emocional que já existe com aquela”.

A situação envolve ainda divisão de custos do bebê (bonecos reborn podem custar, em média, de R$ 1,5 mil a R$ 10 mil), do enxoval e dos lucros que a conta do Instagram do boneco fatura com publicidade. Segundo ela, a questão das redes sociais, que representa um bem patrimonial das pessoas e gera lucro, é um ponto de conflito.

“A outra parte também deseja ser administradora porque a conta do bebê reborn já está rendendo monetização. Eu fiquei pensando: como o Poder Judiciário vai receber estas demandas que são reais?”, questiona a advogada.

Nas redes sociais, alguns influenciadores questionam a atenção destes projetos frente aos problemas atuais na saúde pública e a compra de bebês reborn diante da burocracia e quantidade de crianças na fila de adoção.

De acordo com o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, são 5.271 crianças na espera para ganhar um novo lar. A maioria tem mais de dez anos. Na outra ponta, 34.780 pretendentes desejando a adoção.

Bebês reborn passam por vários processos comuns aos recém-nascidos quando são comprados, como a pesagem (Foto: ATILA ALBERTI)

“Pais” reborn são pessoas sem filhos que se identificam como pais

O problema do sistema público – seja na área de saúde, justiça ou qualquer outra – em validar o mundo reborn vai além dos gastos que poderiam ser direcionados para pessoas reais. “Até onde vai a busca desta autoafirmação?”, questiona Pondé.

Segundo ele, esse fenômeno evidencia também a necessidade de reconhecimento que as pessoas vivem hoje. Ao participar de encontros e ampliar o universo reborn, estes “pais” criam uma identidade e sensação de pertencer a algo maior.

“A pessoa quer ser reconhecida na sua idiossincrasia. Daqui a pouco vão ter pais questionando ‘direitos’ do reborn e mães de reborn reclamando que querem ser reconhecidas como mães também. Ou, alguém vai querer processar uma pessoa porque ela disse que o reborn não é bebê”, diz Pondé.

Gordon diz não duvidar que essa fantasia seja absorvida pelo “nosso sistema revolucionário de justiça e convertida em direito” no qual os homens parecem acreditar que querer equivale a ser. Ele sublinha que a relação entre os ‘pais’ reborn e o seus ‘bebês’ não é de parentalidade. Apesar de se querer emulá-la, é uma relação entre o consumidor e a sua mercadoria, diz.

“É preciso afirmar enquanto há tempo: ‘pais’ reborn não são pais de verdade. Os ‘pais’ reborn são pessoas sem filhos que se identificam como pais. Em suma: No lugar do amor ao próximo, o que temos aí é o amor a si próprio”, afirma o antropólogo.

Bebês reborn são bonecos artesanais, cujos detalhes da pele, cabelo, feições e outros aspectos, imitam uma criança de verdade (Foto: ATILA ALBERTI)

O que são os bebês reborn

Os bebês reborn, bonecos hiper-realistas que parecem crianças de verdade, foram criados na década de 1990 como peças de arte, caracterizados pela alta qualidade técnica empregada. Inicialmente, eram objetos de decoração e de colecionismo.

Com o tempo, passaram a ser usados como ferramentas terapêuticas para casos de luto, demência, isolamento e Alzheimer sob a premissa de que a representação de um bebê pode ajudar a externalizar emoções difíceis e trazer conforto.

A produção tão minuciosa e próxima da realidade da textura da pele, do peso, os fios de cabelo e até as dobrinhas nas mãos de um bebê levaram homens e, principalmente, mulheres a darem um novo status para estes bonecos: passaram a ser tratados como filhos, com enxoval, banho, festa de aniversário, amamentação e passeio no shopping.

Os bonecos são feitos artesanalmente a partir de vinil ou silicone. Os compradores podem personalizá-los ou adquirir produtos prontos. A artesã Aline Lima começou a produzir bonecas reborn em 2020. Ao jornal Tribuna do Paraná, ela contou que na sua loja “Maternidade Bebê Reborn Curitiba” a preferência é por “bebês” prontos.

“Mas existem aquelas pessoas que querem um bebê personalizado com a cor do cabelo, o rostinho de uma forma específica ou a cor dos olhos. Também há quem peça para fazer inspirado nos filhos quando eram pequenos”, explica a artista.

Aline diz que suas principais clientes são as crianças e que nunca conheceu uma pessoa que tratasse os reborn como filhos: “Não existe isso de que mulheres tratam os bebês reborn como filhos de verdade. Eles mudaram a minha vida e são o meu sustento e de toda a minha família”.

Na “maternidade” dela, e de outras lojas que comercializam bebês reborn, é possível também acompanhar a simulação de um parto.

Vídeos na internet mostram dois modelos. Um deles é o empelicado, em que a boneca “nasce” envolta em uma película que simula a bolsa amniótica. No outro, o “bebê” é retirado de uma barriga de silicone ou plástico como se fosse uma cesariana.

Em ambos, a pessoa que realiza o “parto” usa luvas, jaleco, o espaço é ambientado e o boneco pode vir com “cordão umbilical”, fazer “aferição de temperatura”, “teste do pezinho” e “tomar vacinas”.

A evolução dos bonecos imóveis para cada vez mais interativos acompanha outro fenômeno: a relação com a inteligência artificial, que é só desligar.

Na Espanha, existe uma empresa que produz bebês avatares e bebês animatrônicos (bebês robóticos com movimento) que podem arrotar, ser amamentados, pedir colo e trazer outras funcionalidades acionadas por sensores. “Como um bebê de verdade, o novo Babyclon AI 2.0 chorará por fome, por sono ou para você trocar a fralda”, diz a descrição do site.

Para Carlos Frederico Lucio, antropólogo, doutor em Ciências Sociais, e professor da ESPM, a afetividade superficial não é fruto da tecnologia, pois é inerente ao humano, mas ganhou escala com novas ferramentas digitais. O apego ao bebê reborn, diz ele, está escancarando a relação das pessoas com a tecnologia, a artificialidade nas relações e a dificuldade que as pessoas têm em ter relacionamento afetivo.

“Essa questão fala muito sobre sociedade de hoje, que direciona sua afetividade para algo ou alguém que não vai incomodar, que não tenha nenhuma ruptura do seu cotidiano. A artificialidade vai ocupar o espaço da outra pessoa que em uma relação é natural incomodar, porque a máquina é assim: você desliga”, diz Lucio.

“Maternidade” de bebês reborn em Curitiba. (Foto: ATILA ALBERTI/TRIBUNA DO PARANA)

Até que ponto a relação reborn é saudável ou patológica?

O psiquiatra Luiz Eduardo Xavier enfatiza que é importante evitar uma visão dicotômica (certo ou errado) e focar em sinais de alerta.

“Quando o bebê reborn é tratado como objeto de coleção ou decoração, sem prejuízo à vida da pessoa, não há problema. O mesmo vale para seu uso terapêutico, desde que orientado por um profissional. Mas quando o apego compromete tempo, energia, dinheiro, relações e responsabilidades, pode indicar um problema. Isso mascara o luto que deve ser processado”.

A psicóloga Marta do Rêgo Monteiro, do consultório online Amplii corrobora que digerir a perda é necessário para a cura. “O importante é não ter confusão entre a fantasia e a realidade. Levar para casa e tratar como uma criança pode ser um problema até mesmo em casos de luto”.

Xavier explica que criar um vínculo afetivo com um bebê reborn é também uma infantilização e reflexo do isolamento pós-pandemia, pulverizado pelas redes sociais. Isso porque o boneco atende aos desejos dos “pais”, ou seja, é uma relação segura, sem frustações.

O problema, diz ele, é que isso pode paralisar o desenvolvimento da inteligência emocional e das habilidades para lidar com desafios: porque é nas relações reais que se aprende, por meio das frustações, rejeição, e da indisponibilidade do outro.

“Quando o bebê é real, quem determina a rotina e as demandas é a criança. Com o reborn, a mãe deixa de ser suporte do bebê e ele passa a ser o da mãe”, diz o psiquiatra.

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noticia por : Gazeta do Povo

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