24 de fevereiro de 2025 - 15:14

Adriana Varejão escancara as entranhas do colonialismo em exposições no exterior

O mundo está em carne viva. Entre a África e Europa, existe uma ferida prestes a engolir tudo ao redor. Uma sutura tenta fechar o ferimento e estancar a sangria, mas é inútil. No mar, já não há peixes ou barcos, mas úlceras e gotas de sangue. Em “Mapa de Lopo Homem”, é assim que o mundo acaba, não com um estrondo, mas com uma ferida histórica.

Nessa tela, Adriana Varejão tirou de cena a aura de heroísmo que paira sobre a expansão marítima e pôs no lugar uma visão bem mais crítica sobre esse processo. Capitaneado por Portugal e Espanha, o projeto ultramarino teve como consequência o extermínio de povos indígenas e a escravização sistemática de populações africanas.

“Na diáspora, o mar não significa um lugar de poesia, mas um espaço de conflitos. Mesmo tentando suturar esse passado, a gente não consegue superá-lo”, diz Varejão, enquanto mostra o quadro em um computador de seu ateliê, na zona sul carioca.

A obra integrará a exposição “Entre os Vossos Dentes”, no Centro de Arte Moderna Gulbenkian, em Lisboa, a partir de abril. Com quase cem peças, o projeto reunirá trabalhos de Varejão e de Paula Rego, artista lusitana morta em 2022.

São pintoras de diferentes países e gerações, mas que têm um projeto estético convergente. Se por um lado Varejão tematizou a violência colonial, por outro Rego elegeu a opressão patriarcal como seu objeto de análise. Retirado de um poema de Hilda Hilst, o título da mostra faz referência a essas dinâmicas de dominação.

“’Entre os Vossos Dentes’ é um verso que fala sobre a ideia de um poder opressor e triturador de pessoas”, diz ela, que assina a curadoria da mostra ao lado do pesquisador Victor Gorgulho e da crítica de arte Helena de Freitas. “Achei que ele poderia tanto tratar sobre o feminismo, presente na obra de Paula Rego, quanto sobre a questão colonial.”

Essas temáticas permeiam a exposição, mas podem ser observadas de forma mais contundente em “Fui Terra, Fui Ventre, Fui Vela Rasgada”, umas das 13 galerias que compõem a mostra. O espaço expositivo receberá a tela “A Primeira Missa no Brasil”, obra em que Rego pintou uma mulher grávida com o semblante angustiado. Sobre a cama, há um lençol vermelho sangue que aumenta a atmosfera de aflição da cena.

Atrás da gestante, a pintora reproduziu o trabalho que dá nome à tela, elaborada por Victor Meirelles no século 19.

A obra do brasileiro é inspirada na carta de Pero Vaz de Caminha, documento considerado pela historiografia tradicional a certidão de nascimento do Brasil. Enquanto Rego fala sobre o parto de um filho, Meirelles trata sobre o surgimento de um país. Ambos os nascimentos, porém, parecem resultar de uma agressão.

A barbárie está presente de forma mais direta em “Filho Bastardo II”, obra de Varejão que integra o mesmo núcleo expositivo. No trabalho, ela pintou um aristocrata estuprando uma mulher escravizada na sala de estar.

No cômodo, dois fidalgos conversam como se nada estivesse acontecendo, enquanto uma fissura rasga a tela ao meio. Como a artista costuma dizer, são feridas que servem para profanar a história contada pelos vencedores.

Para ela, obras como essa são particularmente necessárias em Portugal. “É um país que precisa ouvir certas coisas. Precisa ouvir que eles têm uma dívida histórica. Essas discussões ainda não acontecem lá como estão acontecendo no Brasil.”

A pintora diz ter ficado espantada ao visitar o Museu do Tesouro Real, em Lisboa. “É constrangedor. Eles falam sobre o ouro que veio do Brasil, mas não existe um texto sobre a escravidão. Não existe um contexto sobre como esse material foi extraído. Há vários temas relacionados a questões identitárias que não recebem discussões fortes em Portugal”, diz a artista, que tem obras em instituições renomadas, como Guggenheim, Tate Modern, Fundação Cartier e Metropolitan Museum of Art.

Em mais de três décadas de carreira, Varejão se notabilizou por pintar saunas labirínticas e por transformar azulejos em metáforas para o nosso passado de colônia extrativista. Foi isso o que fez em “Língua com Padrão Sinuoso”, série que está presente na exposição lisboeta. Nesse trabalho, ela rasgou a azulejaria portuguesa para revelar o que se esconde sob a fachada do colonialismo.

“Azulejos representam racionalidade, assepsia, limpeza e controle. Quis romper essa superfície e deixar à mostra o que existe por trás dela, ou seja, memórias e pulsões de vida.”

Já em “Proposta para uma Catequese: Morte e Esquartejamento”, a pintora usou a azulejaria não para revelar, mas para subverter. No lugar de figuras cristãs, o trabalho mostra um ritual antropofágico, em que indígenas tupinambás devoram o corpo de Cristo. No alto da tela, lê-se em latim “Comei e bebei do meu corpo e do meu sangue. Eu estou em ti. Vocês estão em mim.”

Para Varejão, essa é uma forma de jogar luz sobre novas perspectivas históricas. “Eu quero quebrar hierarquias e contar narrativas que estão à margem.”

A julgar pela agenda dela neste ano, não faltarão oportunidades para isso. Além da mostra em Portugal, a pintora ganhará outras duas exposições. Uma acontecerá a partir de maio na galeria Gagosian, em Atenas, e terá como fio condutor a produção de cerâmicas. A outra será realizada no Hispanic Society Museum & Library, em Nova York, no mês que vem.

Intitulada “Não Se Esqueça, Viemos dos Trópicos”, a mostra apresentará ao público um conjunto de cinco pratos inéditos. Varejão já havia apresentado obras feitas a partir desse suporte em 2012, quando fez uma exposição do Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM.

Desta vez, ela amplia o tamanho dos objetos para tratar sobre a Amazônia. Em 2003, a artista passou oito dias em Demini, no território Yanomami, como parte de uma residência artística. “Fiquei impressionada com a mitologia deles. São mais de 250 mitos. É uma riqueza cultural absurda.”

Não à toa, as cosmologias amazônicas estão presentes na exposição, a sua terceira individual nos Estados Unidos.

Em uma das obras, vemos um ser híbrido em meio à vegetação densa e exuberante. O corpo é de mulher grávida, enquanto o rosto é de mucura —espécie de gambá associado pelos yanomami à fertilidade. Atrás de cada um dos pratos, Varejão fez pinturas que remetem à porcelana de diferentes tradições, desde a chinesa, passando pela espanhola até chegar à otomana.

Se dentro da mostra a relação com a fauna é de simbiose, no lado de fora o contato com os bichos é bem mais hostil. A artista decidiu fazer uma intervenção na estátua de um guerreiro castelhano instalada na entrada do museu.

Montado em seu cavalo, o homem emana poder e virilidade, como se fosse a materialização em bronze do imperialismo europeu. Varejão, no entanto, quer desconstruir essa empáfia. Para isso, projetou uma sucuri de 21 metros feita com fibra de vidro. O bicho vai se enroscar em volta da escultura com a boca aberta, reduzindo o guerreiro a uma simples presa.

“É como se a cobra dissesse que ele não é tudo isso, que ele não é a medida de todas coisas. Nessa obra, a sucuri é uma força da natureza que subverte a ordem.”

noticia por : UOL

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