3 de fevereiro de 2025 - 10:53

Epidemia silenciosa: como a falta de sono está encurtando nossas vidas

Até pouco tempo, a ciência não sabia explicar por que passamos um terço da vida dormindo ou quais eram as consequências reais da privação de sono. Em seu livro “Por que Nós Dormimos” (editora Intrínseca), o neurocientista Matthew Walker explora décadas de pesquisas para oferecer respostas a essas questões — sempre com uma abordagem envolvente e acessível.

Diretor do Laboratório do Sono e Neuroimagem da Universidade da Califórnia, Walker alerta para as graves consequências da privação de sono, que vão desde o aumento do risco de doenças como Alzheimer, câncer e diabetes até transtornos psiquiátricos.

No trecho a seguir, extraído da introdução da obra, o autor discorre sobre o impacto devastador do sono insuficiente no organismo e explica por que dormir bem é crucial não apenas para viver mais, mas para viver melhor.

Você acha que dormiu o suficiente nessa semana que passou? Consegue se lembrar da última vez que acordou sem despertador sentindo-se revigorado, não tendo que recorrer à cafeína?

Se a resposta a qualquer dessas perguntas for negativa, você não está sozinho. Dois terços dos adultos em todos os países desenvolvidos não seguem a recomendação de ter oito horas de sono por noite.

Duvido que esse dado tenha surpreendido você, mas talvez as suas consequências o espantem. O hábito de dormir menos de seis ou sete horas por noite abala o sistema imunológico, mais do que duplicando o risco de câncer.

Sono insuficiente é um fator de estilo de vida decisivo para determinar se um indivíduo desenvolverá doença de Alzheimer. Sono inadequado — até as reduções moderadas por apenas uma semana — altera os níveis de açúcar no sangue de forma tão significativa que pode fazer com que a pessoa seja classificada como pré-diabética.

Ele também aumenta a probabilidade de as artérias coronárias ficarem bloqueadas e quebradiças, abrindo assim o caminho para doenças cardiovasculares, derrame cerebral e insuficiência cardíaca congestiva.

Confirmando a sabedoria profética de Charlotte Brontë [escritora e poeta inglesa do século XIX] de que “uma mente agitada faz um travesseiro inquieto”, a perturbação do sono também contribui para todas as principais enfermidades psiquiátricas, incluindo depressão, ansiedade e tendência ao suicídio.

Dietas se tornam inúteis se não dormimos o bastante

Talvez você também tenha reparado que sente mais vontade de comer quando está cansado. Isso não é coincidência: a insuficiência de sono eleva a concentração de um hormônio que nos faz sentir fome ao mesmo tempo que refreia um hormônio complementar que, ao contrário, gera satisfação alimentar.

Apesar de estar satisfeito, você ainda quer comer mais — uma receita comprovada para o ganho de peso tanto em adultos quanto em crianças com deficiência de sono. Pior, quando tentamos fazer dieta, mas não dormimos o bastante, ela se prova inútil, já que a maior parte do peso que perdemos é de massa corporal magra, não gorda.

Ao somar as consequências para a saúde já citadas, fica mais fácil aceitar uma relação comprovada: quanto mais breve é o seu sono, mais breve será a sua vida. Portanto, a velha máxima “Dormirei quando estiver morto” é infeliz — adote tal atitude e você estará morto mais cedo e a qualidade dessa vida (mais curta) será pior.

O elástico da privação de sono só pode se esticar até certo ponto antes de arrebentar. Infelizmente, os seres humanos são a única espécie que se priva deliberadamente de sono sem obter um ganho legítimo.

Todos os componentes da saúde física, mental e emocional e incontáveis costuras do tecido social estão sendo erodidos pelo nosso oneroso estado de negligência do sono: tanto humano quanto financeiro. A Organização Mundial da Saúde (OMS) inclusive já declarou que há uma epidemia de privação de sono em todos os países industrializados.

Não por acaso, os países onde o tempo de sono diminuiu de forma mais acentuada durante o último século — como os Estados Unidos, o Reino Unido, o Japão e a Coreia do Sul e vários na Europa Ocidental — são também os que sofrem o maior aumento nas taxas de doenças físicas e de transtornos mentais já mencionados.

Número de acidentes causados por sonolência ao volante é alarmante

Cientistas, como eu mesmo, começaram até a pressionar os médicos para que passassem a “prescrever o sono”. Em matéria de conselho médico, talvez esse seja o mais indolor e agradável de se seguir.

Mas não confunda isso com um apelo para que os médicos passem a prescrever mais comprimidos para dormir — trata-se justamente do contrário, considerando os indícios alarmantes que cercam as consequências deletérias do uso de tais medicamentos para a saúde.

Mas é possível chegar ao ponto de afirmar que a falta de sono pode simplesmente levar à morte? Na verdade, sim — pelo menos de dois jeitos.

Primeiro, há um transtorno genético muito raro que começa com uma insônia progressiva que surge na meia-idade. Vários meses após o início da doença, o paciente para de dormir por completo.

Nesse estágio, ele começa a perder muitas funções cerebrais e corporais básicas. Nenhum dos medicamentos disponíveis atualmente o ajudará a dormir.

Depois de 12 a 18 meses nessas condições, o paciente morrerá. Embora seja raríssimo, esse transtorno comprova que a falta de sono pode matar um ser humano.

Segundo, há a situação fatal de estar ao volante de um veículo motorizado sem ter dormido o suficiente. Dirigir com sono é a causa de centenas de milhares de acidentes de trânsito e tragédias todos os anos.

E nesse caso não é só a vida dos privados de sono que está em risco, mas a de quem está à sua volta. Tragicamente, a cada hora nos Estados Unidos uma pessoa morre em um acidente de trânsito em virtude de erros relacionados à fadiga.

É alarmante saber que o número de acidentes causados por sonolência ao volante excede o dos causados por álcool e drogas combinados.

Grandes mentes da humanidade foram incapazes de explicar por que dormimos

A apatia da sociedade em relação ao sono se deve, em parte, ao fracasso histórico da ciência em explicar por que precisamos dele. O sono ainda é um dos últimos grandes mistérios da biologia.

Todos os poderosos métodos de solução de problemas na ciência — genética, biologia molecular e tecnologia digital de alta potência — foram incapazes de destrancar o resistente cofre do sono.

Mentes rigorosíssimas — incluindo o ganhador do prêmio Nobel Francis Crick, que deduziu a estrutura de escada torcida do DNA, o famoso educador e retórico romano Quintiliano e até Sigmund Freud — tentaram em vão decifrar o enigmático código do sono.

Para melhor expressar esse estado de ignorância científica anterior, imagine o nascimento do seu primeiro filho. No hospital, a médica entra no quarto e diz: “Parabéns. É um menino saudável. Fizemos todos os testes preliminares e parece que está tudo bem”.

Então dá um sorriso tranquilizador e se dirige para a porta; mas, antes de sair, vira-se e completa: “Só tem uma coisa. De agora em diante e pelo resto da vida, seu filho irá cair repetida e rotineiramente em um estado de coma aparente. Às vezes pode até parecer que morreu. E, embora seu corpo permaneça imóvel, com frequência sua mente será povoada por alucinações impressionantes, bizarras. Esse estado consumirá um terço de sua vida e não faço a menor ideia de por que ele fará isso ou para que serve. Boa sorte!”.

É espantoso, mas até muito recentemente essa era a realidade: os médicos e os cientistas não tinham como dar uma resposta coerente ou completa sobre por que dormimos.

Considere que já conhecemos as funções dos três outros impulsos básicos na vida — comer, beber e se reproduzir — há muitas dezenas, se não centenas, de anos. Entretanto, o quarto principal impulso biológico, comum a todo o reino animal — o desejo de dormir —, permanece além da compreensão da ciência por milênios.

Dormir é um dos comportamentos humanos mais intrigantes

Abordar a questão de por que dormimos de uma perspectiva evolucionária aumenta ainda mais o mistério. Qualquer que seja o ponto de vista que se adote, dormir parece ser o mais estúpido dos fenômenos biológicos.

Quando se está dormindo, não é possível obter comida. Não é possível socializar. Não é possível encontrar um parceiro e se reproduzir. Não é possível se alimentar ou proteger a prole. Pior ainda, o sono deixa o indivíduo vulnerável aos predadores.

Dormir é sem dúvida um dos comportamentos humanos mais intrigantes. Por quaisquer dessas razões — quiçá por todas elas combinadas —, deve ter havido uma forte pressão evolucionária para impedir o surgimento do sono ou de qualquer coisa remotamente parecida.

Como declarou um cientista do sono: “Se o sono não serve a uma função absolutamente vital, ele é o maior erro já cometido pelo processo evolucionário”.

Entretanto, o sono perseverou — e o fez heroicamente. De fato, todas as espécies até hoje estudadas dormem. Esse simples fato estabelece que o sono evoluiu com a própria vida em nosso planeta ou muito pouco depois dela

Além disso, a subsequente persistência do sono ao longo de toda a evolução significa que deve haver benefícios enormes que superam muito todos os riscos e prejuízos óbvios.

Em última análise, perguntar “Por que nós dormimos?” era a questão errada, pois implica que haveria uma única função — um santo graal de uma razão pela qual dormimos — e insistimos em desvendá-la.

noticia por : Gazeta do Povo

Ouvir Band FM

--:--
--:--
  • cover
    Band FM 99.3

LEIA MAIS