Em 9 de maio de 1969, uma sexta-feira, dezesseis pessoas se distribuíram pela Rua Piratininga, no Brás, em São Paulo (SP). Ocuparam duas agências vizinhas, uma do Banco Itaú, outra do Banco Mercantil. Anunciaram o assalto, deixaram panfletos com longos textos contra a ditadura militar e a favor de ideais comunistas e, por fim, fugiram, não sem antes deixar o gerente do Itaú, Norberto Draconetti, esfaqueado.

Na avenida, ao perceber a movimentação, o guarda-civil Orlando Pinto Saraiva se aproximou correndo, com a arma apontada na direção de um dos criminosos — o ex-sargento Darcy Rodrigues. Uma única pessoa ficou responsável por dar cobertura aos assaltantes. Seu nome era Carlos Lamarca.

“Lamarca, a 30 metros de distância, dispara o 38 e acerta a nuca do guarda, que dá uma volta no corpo e recebe mais um tiro no rosto”, relatam Oldack Miranda e Emiliano José na biografia que escreveram sobre ele, publicada em primeira edição em 1980 e que inspiraria também um filme de 1994, com Paulo Betti no papel principal.

Na sequência, Lamarca pega um fuzil e dá tiros para cima, paralisando o trânsito e facilitando a fuga do grupo. O assalto marcou a primeira aparição pública de Lamarca desde que ele desertara das forças armadas, em 24 de janeiro. “A operação rendeu muita publicidade, sobretudo para a mitologia do renegado, mas acabou em prejuízo. Um dos bancos tinha o cofre trancado e outro, a caixa vazia. Fechada a conta, arrecadara-se menos de duzentos dólares”, relata Elio Gaspari no livro A Ditadura Escancarada.

Foi também a primeira vez que Lamarca cometeu assassinato – e logo durante um assalto a banco, ironicamente, ele meses antes havia conduzido treinamentos de tiro para funcionárias dos caixas do Bradesco. Lamarca deixaria mais corpos para trás até sua morte, no sertão baiano, em 17 de setembro de 1971, aos 33 anos, enquanto tentava implementar um foco de guerrilha rural que levasse o Brasil à ditadura do proletariado. Quanto ao guarda-civil, ele entrou para uma longa lista de vítimas da guerrilha.

Nascido em 27 de outubro de 1937, no Morro de São Carlos, no Estácio, no Rio de Janeiro (RJ), Carlos Lamarca era um dos sete filhos de um sapateiro, Antonio Lamarca Neto, e da dona-de-casa Gertrudes da Conceição Sperduto, descendentes de imigrantes originários do sul da Itália. Estudou o primário na Escola Canadá e o ginásio no Instituto Arcoverde até que, em 1955, ingressou na Escola Preparatória de Cadetes (EsPCEx), em Porto Alegre (RS).

As lendas sobre sua juventude apontam que ele participou de manifestações públicas a favor da campanha “O petróleo é nosso”. Ele também seria leitor ávido de clássicos, em especial Guerra e Paz, de Leon Tolstói, ainda que seu desempenho acadêmico ao longo da formação militar tenha sido medíocre.

Da capital gaúcha seguiu para a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), em Resende (RJ), onde se formou em 1960, com a 46ª colocação entre 57 alunos. Por outro lado, era conhecido como exímio atirador. Magro, com 1,73 metro de altura, semblante constantemente sério, ele chegou a representar o II Exército durante um torneio de tiro em Recife. Dizia-se que ele costumava se distrair alvejando ratos. Na época, o jornal Voz Operária, do Partido Comunista Brasileiro, circulava entre parte dos cadetes, e é possível que ele tenha tido acesso a estes textos.

Ao longo da década de 1960, Lamarca se mudou de cidade diversas vezes. Atuou no 4º Regimento de Infantaria, no distrito de Quitaúna, em Osasco (SP). Dali seguiu para a Faixa de Gaza, em 1962, quando integrou o Batalhão Suez, nas Forças de Paz da Organização das Nações Unidas (ONU). À época, sua esposa, Maria Pavan, já havia dado à luz ao primeiro filho do casal, César, e estava grávida de uma menina, Cláudia. No exterior, impactado pela pobreza que vivenciou, teria iniciado suas leituras sobre o marxismo.

De volta ao Brasil, Lamarca serviu à 6ª Companhia de Polícia do Exército, em Porto Alegre, onde estava quando aconteceu o golpe militar. O cenário gaúcho era fortemente influenciado por Leonel Brizola, cunhado do presidente deposto João Goulart. Aliás, dias antes do golpe, em 13 de março de 1964, durante o Comício da Central do Brasil, que acirrou os ânimos nas Forças Armadas e acelerou a tomada de poder, Brizola havia defendido o fechamento do Congresso Nacional, que seria substituído por uma assembleia nacional composta por “camponeses, operários, muitos sargentos e oficiais nacionalistas”.

Em dezembro de 1964, Lamarca permitiria a fuga de um capitão brizolista que havia sido colocado sob sua guarda, um incidente que não gerou nenhuma punição mas o levou a ser transferido de volta a Quitaúna.

A partir de 1965, já instalado em Osasco, Lamarca acelerou suas atividades subversivas sob influência de Darcy Rodrigues, um antigo amigo que já militava pelo comunismo. Entre leituras de textos de Vladimir Lenin e Mao Zedong e conversas com outros militares de tendências de esquerda, participou da formação de uma célula comunista dentro do 4º Regimento. Ao longo de 1968, começou a planejar a deserção.

Lamarca aproximou-se então de outras lideranças, em especial Carlos Marighella, líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), que tinha acesso à ditadura de Cuba. Marighella organizou a operação de fuga de Maria Pavan, César e Cláudia, enquanto Lamarca participava do planejamento de um plano ambicioso, que seria realizado no dia 26 de janeiro e envolveria uma série de ações simultâneas de impacto: ataques com lança-rojões contra o Palácio dos Bandeirantes e o Quartel General do II Exército, no Ibirapuera, além de bombas detonadas na Academia Militar de Polícia e ocupação do Campo de Marte, de forma a levar caos à aviação. No mesmo dia, Lamarca abandonaria o Exército, com três colegas militantes, carregando a maior quantidade possível de armas, e participaria dessas atividades.

Mas a ação foi cancelada porque, dias antes, integrantes do grupo foram presos enquanto pintavam um caminhão com as cores militares, nos arredores de São Paulo – um garoto da vizinhança se aproximou, foi agredido e relatou aos pais, que chamaram a polícia. Lamarca então precisou improvisar e escapou com uma coleção de fuzis FAL, um modelo de combate leve, de origem belga, utilizado também pelas forças da ONU.

Seus biógrafos relatam o momento em que o militante traiu as Forças Armadas: “Eram quatro e meia da tarde, ainda do dia 24 [de janeiro de 1969], quando Lamarca entrou com sua Kombi no quartel de Quitaúna. Aos soldados da Companhia ordena que tragam as armas e retira dali 63 fuzis FAL, três metralhadoras INA e alguma munição. Dois sargentos veem aquela movimentação toda e perguntam: ‘O que está acontecendo?”. Lamarca responde: ‘É para um treinamento de tiro’”.

Assim tinha início a vida clandestina de Lamarca. Na mesma data, ele ainda teria arranjado tempo para se despedir da família no aeroporto. Nunca mais os veria. César tinha oito anos e Cláudia, seis. Tampouco teria contato com os pais, que havia visitado pela última vez no Natal de 1968. Antecipada, a fuga foi marcada pelo improviso, como relata Gaspari. “Desabrigado, Lamarca estivera enlatado por quase 12 horas num minúsculo Gordini, enquanto seus colegas buscavam um refúgio”.

Metade das armas roubadas seriam recapturadas rapidamente – uma das peças seria encontrada em janeiro de 1978, enterrada em um terreno baldio de São Paulo. Mas a parte que permaneceu com a guerrilha na época ajudou Lamarca a realizar assaltos a banco.

Quanto a Marighella, Lamarca não demonstrou gratidão pela operação que salvou sua família. Em carta à esposa, que já vivia no exterior, escreveu: “Aí [em Cuba] pensam que ele é o líder e o comandante da Revolução no Brasil. É engano, primeiro porque não tem qualidades para isso, é egoísta, personalista e desleal, e segundo porque a organização dele é mal estruturada”. Marighella morreria durante uma operação militar em novembro de 1969.

Entre uma ação e outra, Lamarca permanecia longas semanas escondido em apartamentos mantidos pelos guerrilheiros – ele participaria de três grupos diferentes, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8). Ainda no primeiro semestre de 1969, colocou em prática seu plano mais ambicioso: iniciar uma ação de guerrilha rural no Vale do Ribeira, uma área de quase 30 mil metros quadrados no sul de São Paulo, próxima da divisa com o Paraná. Na época, enquanto produzia cartas apaixonadas para a esposa e os filhos, já vivia com a militante Iara Iavelberg.

“O capitão Lamarca não acreditava muito na esquerda brasileira, especialmente a que dirigia os movimentos de estudantes, e vivia à procura de uma alternativa que pudesse materializar o ideal de Che Guevara; ir para o campo, deflagar a guerrilha e levar o povo ao poder”, escrevem os biógrafos.

Um grupo de militantes se deslocou para o vale, onde recebeu treinamento de tiro de Lamarca e aulas de marxismo de Iara. Mas a prisão de integrantes do grupo no Rio de Janeiro levou as forças de segurança a descobrirem a operação. A partir do fim de abril, mais de 2500 policiais e militares bloqueiam as estradas de acesso, prendem mais de 120 moradores, sobrevoam a área com helicópteros e chegam a utilizar um avião B-26 da Força Aérea Brasileira (FAB) para bombardear pontos suspeitos.

Oito dos militantes fogem antes do início da operação. Dois, inclusive Darcy Rodrigues, são presos. Sobram sete: Lamarca, Ariston Lucena, Yoshitane Fujimori, Edmauro Gopfert, Gilberto Faria Lima, José Araújo da Nóbrega e o ex-militar Diógenes Sobrosa de Souza. No dia 31 de maio, três remanescentes deste grupo chegam à capital paulista. Depois de diferentes confrontos com forças militares, haviam deixado muitos mortos e feridos para trás.

Em relatos posteriores, o próprio Lamarca informaria, por exemplo: “Em Eldorado topamos com uma barreira da Polícia Militar. Iniciamos um combate, abatendo sete policiais”. Em outro momento, escreveu: “Limitamos nossas ações às necessárias ao rompimento do cerco tático e estratégico. Causamos dez baixas e fizemos 18 prisioneiros nos três combates que travamos.”

Também confessaria: “Depois de algumas discussões, julgamos e justiçamos o tenente Paulo Mendes Júnior, que ia como prisioneiro”. Depois de um confronto aberto com os guerrilheiros, Júnior havia se oferecido para ficar como refém do grupo, para que seus subordinados pudessem seguir em liberdade – vários estavam feridos.

Lamarca, Fujimori e Sobrosa seguiram carregando o militar consigo, na esperança de que ele conseguisse levantar uma barreira na estrada. Mas o plano não deu certo, e eles passaram a considerar o tenente como um fardo desnecessário.

A biografia de Lamarca narra, com frieza: “A sentença de morte deveria ser cumprida por fuzilamento. Mas os guerrilheiros se viram num impasse; estavam cercados pelas tropas, um tiro localizaria suas posições. Mataram-no a coronhadas de fuzil e depois enterraram-no”. Demorou quatro meses para que o cadáver fosse encontrado. O tenente de apenas 23 anos seria promovido a capitão de forma póstuma. Hoje, ele é considerado herói e patrono da Polícia Militar. 

Refugiado novamente em aparelhos, Lamarca entrou em 1970 como o homem mais procurado do Brasil. Naquele ano, liderou o sequestro do embaixador Giovanni Enrico Bucher, que permaneceu 47 dias em cativeiro até ser liberado em troca do envio de 70 guerrilheiros ao exílio, em dezembro de 1970. A ação ceifou a vida do agente de segurança Hélio Araújo de Carvalho. Foi o último rapto de diplomatas, o mais longo e o primeiro em que o governo federal resolveu negociar de forma mais dura. Naquele momento, a guerrilha já estava enfraquecida, com boa parte dos quadros presa, morta ou exilada. Lamarca decidiu então seguir para o interior da Bahia, numa Kombi, junto de Iara, que permaneceria em Salvador (BA).

Sua localização acabaria por ser descoberta: ele vivia em uma barraca nos arredores de Buriti Cristalino. Recebia cigarros e alimentos de um grupo de irmãos que o apoiavam, especialmente José Campos Barreto, conhecido como Zequinha Barreto, que em 1968 havia atuado como líder grevista em São Paulo. Iara morreu em 20 de agosto de 1971 – teria se suicidado, ainda que a família tenha questionado essa conclusão da polícia. Dias depois, começava a perseguição a Lamarca.

“No dia 25 de agosto o major Cerqueira reuniu-se na sala de instruções do QG da 6ª Região Militar com as equipes que caçavam Lamarca no sertão. Deu à mobilização o nome Operação Pajussara, homenageando uma praia de Maceió, e nas comunicações por rádio Lamarca era chamado de ‘a mercadoria’. Somavam 215 homens. Era um combinado de todos os serviços de informações militares e de policiais paulistas e baianos”, relata Elio Gaspari.

“Fugiam havia vinte dias e trezentos quilômetros quando pararam para descansar perto de Pintada, lugarejo de cinquenta casas. Dois homens deitados debaixo de uma imponente baraúna. Um dormia com a cabeça apoiada numa pedra, o outro sentara-se. Estavam a trezentos metros da estrada. O barulho de um galho estalado acordou Zequinha: ‘Capitão, os homens estão aí’. Correu para o mato e foi varrido. Cirilo ergueu-se e levou sete tiros. Um atravessou-lhe o tórax, transfixando o coração e os dois pulmões”, diz o relato de Gaspari.

Desde o início da década de 1990, a família de Lamarca busca uma promoção póstuma para Lamarca, além de pensão para a viúva e de indenização pelos anos em que ela e os filhos viveram em Cuba – os três retornariam ao Brasil em 1979. Em outubro de 2007, foi suspensa a decisão que, em julho, havia elevado o terrorista ao posto de coronel, com proventos de general-de-brigada.

No mesmo ano, a Comissão de Anistia concedeu indenização de R$ 100 mil para Maria e os dois filhos de Lamarca, totalizando R$ 300 mil, além de pensão vitalícia de R$ 12 mil e uma reparação econômica no valor de R$ 902.715,97. A decisão foi cancelada em 2015 e ainda é alvo de disputas. Em 2022, a Justiça manteve suspenso o pagamento de indenizações.