A divulgação dos dados do Censo Demográfico de 2022, realizada no início de junho pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontou transformações significativas no perfil religioso da população brasileira com 10 anos ou mais.
O levantamento revelou a queda do número de católicos, o crescimento em ritmo mais moderado dos evangélicos, o aumento dos praticantes de religiões de matriz africana e o avanço daqueles que se declaram sem religião.
Segundo o IBGE, os católicos seguem como o maior grupo religioso do País, representando 56,7% da população em 2022, o equivalente a 100,2 milhões de pessoas. Em 2010, eram 105,4 milhões, ou 65,1% da população; em 2000, somavam 74%. Apesar de manterem a hegemonia, os dados indicam um declínio contínuo nas últimas décadas.
Em contrapartida, os evangélicos registraram crescimento. Em 2000, eram 15% da população; em 2010, o percentual subiu para 21,6%; em 2022, chegaram a 26,9%, o que representa 47,4 milhões de pessoas.
Já os sem religião passaram de 7,9% em 2010 para 9,3% em 2022. As religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé, passaram de 0,3% para 1% da população, enquanto as outras religiões cresceram de 2,7% para 4%. O espiritismo sofreu queda, passando de 2,2% para 1,8%, e as religiões indígenas mantiveram-se em 0,1%.
Católicos divididos
A religião católica, marcada por mais de cinco séculos de presença no Brasil desde o período colonial, ainda reúne a maioria da população, embora com retração nos últimos censos.
Para a cientista política Priscila Lapa, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a presença católica no cenário político é diversa e difícil de sistematizar: “A Igreja Católica tem essa característica de unicidade, mas, ao mesmo tempo, de mais flexibilidade na frequência dos seus rituais. Isso talvez impeça que a gente consiga perceber de uma forma mais sistemática ou mais blocada o que seria o voto católico, o comportamento eleitoral católico”, explicou.
Segundo ela, embora o voto católico não seja necessariamente alinhado de maneira uniforme, parte significativa dos fiéis compartilha pautas semelhantes às defendidas por setores evangélicos, como a oposição ao aborto e a defesa do modelo tradicional de família.
O antropólogo Antonio George Paulino, da Universidade Federal do Ceará (UFC), define o grupo como politicamente “multifacetado”. “A renovação carismática católica é a expressão dominante na Igreja contemporânea. Seu alinhamento ideológico é diferente de outra expressão da Igreja, que são as comunidades eclesiais de base, alinhadas à teologia da libertação”, afirmou.
Para Paulino, o falecido papa Francisco buscava abrir espaço para essas comunidades, associadas historicamente a pautas sociais e à atuação conjunta com movimentos populares.
Apesar dessas distinções internas, o professor destacou que católicos e evangélicos compartilham pontos de convergência nas pautas morais e, no parlamento, têm atuado como forças aliadas em agendas conservadoras.
Crescimento e poder
Na avaliação dos especialistas, o crescimento da população evangélica tem sido acompanhado de uma maior homogeneidade no comportamento político. A pesquisadora Priscila Lapa observou que, embora existam vertentes diversas, é mais simples identificar um padrão entre os evangélicos: “É possível criar com mais facilidade uma grande categoria do voto evangélico”, afirmou.
De acordo com Paulino, o movimento de ocupação de espaços políticos por lideranças evangélicas tem raízes no final dos anos 1980. Ele lembrou que esse processo ocorre dentro do marco do Estado laico e vem resultando em legislações de reconhecimento cultural sancionadas durante os governos Lula e Dilma.
O pesquisador André Ítalo Rocha, autor do livro A Bancada da Bíblia, disse em entrevista ao jornal Diário do Nordeste que o número de deputados federais vinculados à religião evangélica passou de 32 na redemocratização para cerca de 90 a 100 atualmente, de um total de 513. No Senado, estima-se entre 10 a 15 parlamentares com esse vínculo, entre os 81 senadores.
No campo político, o apoio evangélico à eleição de Jair Bolsonaro em 2018 é citado como um dos marcos mais visíveis dessa presença. Durante o mandato, o ex-presidente adotou pautas consideradas caras ao setor, como a defesa da família tradicional, e indicou o jurista André Mendonça, definido como “terrivelmente evangélico”, ao Supremo Tribunal Federal.
Lapa atribui parte da força política evangélica à forma de organização doutrinária. “O movimento evangélico tem muito essa ideia doutrinária de bem e mal. Ou você é um deles ou você está no caminho errado”, afirmou. Ela destacou ainda o papel de práticas culturais próprias, como a rejeição a festas populares, o que contribui para formar uma identidade coletiva segregada e politicamente coesa.
Desafios e desaceleração do crescimento
Apesar do avanço político e demográfico, o ritmo de crescimento evangélico caiu. Entre 2000 e 2010, o aumento foi de 6,6%; entre 2010 e 2022, o crescimento foi de 5,3 pontos.
Priscila Lapa atribui parte dessa desaceleração à politização excessiva das igrejas. “Esse processo da radicalização que abateu o Brasil fez muita gente se sentir dentro do ápice da discussão política […] isso pode ter gerado uma fadiga do processo”, afirmou.
Paulino apontou também para o aumento dos sem religião, especialmente entre os jovens, como um possível fator de impacto: “Talvez esteja relacionado à consciência crítica das juventudes, que optam pelo não pertencimento religioso ou por uma espiritualidade livre do controle institucional”, afirmou.
Segundo ele, escândalos envolvendo lideranças religiosas — como casos de abuso sexual, corrupção e pedofilia — também podem contribuir para esse cenário.
Tensões
O avanço evangélico em espaços institucionais tem gerado tensões com outras tradições religiosas, especialmente as de matriz afro-brasileira. Paulino acusa os evangélicos de intolerância: “O fundamentalismo evangélico resulta em perseguição às manifestações religiosas afro-indígenas e afro-brasileiras, como umbanda e candomblé, no esforço de reproduzir o apagamento histórico imposto pela colonização”, atacou.
Ele acrescentou que a forma como o poder político é exercido por setores evangélicos muitas vezes não inclui o diálogo com a diversidade religiosa brasileira, reforçando práticas de exclusão simbólica e social.
Perspectivas
O Censo 2022 apontou tendências claras de diversificação religiosa no Brasil. Embora os católicos ainda sejam maioria, o crescimento evangélico e a expansão dos sem religião indicam mudanças sociais de grande impacto. Para especialistas, os reflexos dessas transformações são visíveis tanto no eleitorado quanto na composição das casas legislativas e nas disputas por poder no Estado.
A cientista política Priscila Lapa e o antropólogo Antonio George Paulino ressaltaram que a pluralidade dentro das religiões precisa ser considerada na análise política e social. Ambos também apontam que os próximos anos serão marcados por disputas mais acirradas por influência, identidade e pertencimento entre os diferentes grupos religiosos no País.
FONTE : Gospel Mais