Segundo Paulo Tiné, Garoto “foi além de sua época”, antecipando “a estrutura harmônica principal da música popular brasileira a partir da bossa nova”. Nascido em São Paulo, em 1915, Aníbal Augusto Sardinha morreu em 1955, pouco antes de completar 40 anos.
Em 2025 celebram-se, portanto, os 110 anos do nascimento do violonista e compositor, mas, mais importante, uma outra data redonda, os 70 anos de sua morte, permite que, em breve, a sua obra entre em domínio público.
É natural, portanto, que surjam homenagens. É o caso de “Lembrando Garoto“, álbum recém-lançado pelo trio formado pelo pianista Cristóvão Bastos, o violonista e guitarrista Romero Lubambo, e o saxofonista e flautista Mauro Senise. Com muita improvisação, os três cariocas elevam os temas do paulista a “standards” da música brasileira, além de apresentarem duas composições autorais inspiradas por seu estilo.
Cinco peças são clássicos desse repertório, a começar por “Duas Contas”, a faixa de abertura, que tem bela exposição violonística de Lubambo e solos dos três. Desde o início fica patente como Cristóvão equilibra sem conflito o piano com o violão, em timbragem perfeita.
Já em “Jorge do Fusa”, um dos choros de Garoto mais tocados e gravados pelos violonistas eruditos, o trio “orquestra” a desafiadora frase de dezesseis notas (as fusas) encaixadas em dois tempos. O violão soa um tanto ríspido na exposição do tema, soltando-se depois em improviso decidido.
“Lamento do Morro”, samba que poderia ter sido escrito por Radamés Gnattali (1906-88), é a faixa que mais desenvolve as improvisações: Romero fluentíssimo, Cristóvão sempre elegante, e Mauro com seu característico fraseado ao sax, presente em tantas gravações de referência.
Em “Tristezas de um violão” (também conhecida como “Choro triste nº1”), Lubambo expõe a primeira seção do tema como se seguisse fielmente a partitura para violão solo. Bastos e Senise (na flauta) entram na parte B, já soltos do tema, a esperar o violonista disparar seu improviso matador antes de retomar a melodia principal, agora encorpada pelo piano.
“Gente humilde”, sua composição mais famosa, que nasceu instrumental nos anos 1950 e receberia letra de Vinicius de Moraes e Chico Buarque vinte anos mais tarde, é tratada de forma mais convencional, mas sempre com bom gosto.
O álbum traz também peças menos conhecidas, como “Infernal”, “Recordações”, “Vamos acabar com o baile” e “Benny Goodman no choro”.
Um dos melhores arranjos é o de “Infernal”, choro de 1943 que tem como destaque, nesta versão, o final dobrado por sax e violão. A exposição dá-se apenas a cargo do sax com acompanhamento de piano, o violão entrando apenas na segunda parte, procedimento repetido em “Recordações”, repleta de contrastes de andamento e intenções.
Na nostálgica e virtuosística “Vamos acabar com o baile” –improvável síntese entre Nazareth e Pixinguinha–, Senise sola com o piccolo e, em “Benny Goodman no choro”, Lubambo está à guitarra elétrica.
Garoto acompanhou Carmen Miranda por uma temporada inteira nos Estados Unidos em 1939-40. Com ela e o Bando da Lua, ele tocou de Nova York a San Francisco, passando por Detroit e Chicago.
Mas, de uma forma mais ampla, sua obra somente ganharia o mundo violonístico internacional em 1991, a partir do minucioso trabalho de Paulo Bellinati, que lançou dois álbuns de partituras, transcritas a partir das gravações caseiras originais do próprio Garoto. Por isso, hoje, obras do paulistano são normalmente estudadas e apresentadas como parte dos programas de violão clássico em conservatórios e faculdades em todos os continentes.
O próprio Bellinati, aliás, acaba de revisitar Garoto com o álbum “Paulo Bellinati Trio toca Garoto”, em que atua ao lado do super eclético violonista Daniel Murray e do mestre das sete cordas Swami Jr.
Voltando a “Lembrando Garoto”: nas duas faixas autorais, “Theme I” (um samba de Lubambo), e na faixa título (composição de Bastos), Senise leva ao limite – na flauta e no sax alto – sua arte de articulações móveis e fluidas.
noticia por : UOL