31 de março de 2025 - 22:28

Nenhuma análise feita sobre a China é suficiente sem ver o país de perto

É função de um bom repórter manter-se atualizado, cultivar fontes e se inteirar das discussões mais analíticas e atualizadas na sua área de atuação. No jornalismo de China, porém, poucas coisas substituem observar de perto a realidade. Esta semana serviu para me lembrar disso.

Estou concluindo minha primeira viagem para a China desde que deixei o país em julho de 2022. Oportunidade para encontrar amigos, caminhar pelas ruas de Pequim, me perder nos cheiros, sabores e sentimentos que exalam em cada canto da cidade, mas sobretudo de tentar entender o que mudou de lá para cá. Isso porque não se trata apenas de fazer turismo, mas de tentar sentir, mesmo que de forma superficial, o pulso de um país que, da última vez que vi, estava no auge da Covid zero.

A coluna desta semana é uma oportunidade para compartilhar um pouco das minhas impressões iniciais. A começar pela dissonância entre narrativa, noticiário e experiências individuais. Tudo que tenho lido (e ouvido) sobre a economia chinesa nos últimos meses apontava para um país em um franco padrão de desaceleração, lutando para sustentar o consumo e preso a problemas estruturais como investimento estatal excessivo e ineficiência. É apenas parte da história.

Quem desembarcar em Pequim talvez se surpreenda com lojas cheias. Há talvez significativamente menos estrangeiros nas ruas em comparação com a era pré-pandemia, as pessoas seguem cautelosas com seus gastos, a desconfiança na força do mercado de vez em quando surge em conversas casuais, mas na superfície tudo me pareceu muito mais vibrante e dinâmico do que quando eu morava aqui.

Além disso, nada melhor que estar na China para constatar quão descolada está Washington da realidade. Prevalece nos Estados Unidos um senso de preciosismo onde só americanos conseguem inovar e que restrições à exportação de tecnologia para a China são uma sentença de morte para Pequim.

Pareceu-me o contrário: enquanto americanos seguem presos a debates comezinhos sobre investimento estatal versus privado, reforma fiscal para bilionários e (que ironia) impacto do próprio protecionismo, os chineses têm avançado em áreas como eletrificação não só da frota automotiva mas potencialmente até da indústria de aviação, digitalização da moeda e interiorização da tecnologia de ponta.

China, contudo, é como se convencionou chamar um país composto por territórios massivos, população gigantesca e realidades diametralmente distintas entre duas províncias vizinhas. Então é preciso aprofundar o debate para entender de onde vem tanta ansiedade e pessimismo. Circula, por exemplo, a estimativa de que os governos provinciais —exauridos pela Covid zero e incapazes de gerar receita vendendo direitos de usufruto da terra para um mercado imobiliário que está em profunda crise— acumulam ¥ 3 trilhões (R$ 729 bilhões) em dívidas.

O gigante asiático segue formando 10 milhões de universitários, 4 milhões deles engenheiros, anualmente, e claramente não será capaz de absorver todos eles. Há debates vigorosos em andamento acerca do impacto da inteligência artificial em um mercado de trabalho já combalido e um entendimento tácito de que, ao menos no curto prazo, não haverá resposta global sobre como responder a este desafio por meio de órgãos multilaterais.

Ademais, as soluções mais fáceis para impulsionar o consumo, como a aceleração na reforma do sistema de hukou que limita a migração interna artificialmente, têm apoio político no governo central mas pouco apetite para regulamentação e implementação no nível local.

Ainda que queira ver trabalhadores migrantes gastando mais e potencialmente investindo nas grandes cidades, governos provincial e central seguem temerosos do que uma migração em massa para centros urbanos poderia fazer com o risco de insegurança alimentar ou mesmo na oferta de serviços públicos nas metrópoles.

Há ansiedade e incerteza, mas também otimismo. Teremos tempo para aprofundar tais discussões em textos mais abrangentes no futuro próximo, mas fica aqui o alerta: nenhuma análise (incluindo algumas das minhas próprias) sobre a China me parece profunda o suficiente se não é ao menos parcialmente calcada na experiência in loco. É uma regra importante a não se perder de vista.


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noticia por : UOL

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