Um detalhe tem passado batido no debate sobre a anistia aos golpistas de 8 de janeiro de 2023, reaceso agora com a declaração do novo presidente da Câmara, Hugo Motta, de que os que os responsáveis pela destruição das sedes dos três poderes em Brasília não queriam dar um golpe, pois eram, “apenas, vândalos”.
O detalhe é que, diferentemente de outros momentos da história, os que agora pleiteiam a anistia não podem sequer argumentar que os pretensos beneficiários agiram a favor do Estado democrático de direito, como os “subversivos” que se opunham ao regime militar de 1964. O projeto de anistia em tramitação na Câmara visa beneficiar exatamente os que tentaram pôr abaixo os alicerces da democracia para entronizar como ditador o ex-presidente Jair Bolsonaro. Simples assim.
Justamente por esse “pequeno” detalhe, é inteiramente descabida a pretensão de conceder anistia aos bolsonaristas do 8 de janeiro, apelando para o esquecimento, e repetindo ad nauseam os mesmos erros do passado. Erros que têm nos custado seguidas sublevações contra a “plantinha tenra” da democracia, na expressão de João Mangabeira. Por isso mesmo, o país, desde a proclamação da república (por um militar), tem vivido em permanente sobressalto.
A Lei da Anistia aos opositores do regime militar de 64 começou com o qualificativo “anistia ampla e geral”. Depois, por pressão dos militares, o ditador de plantão, general Figueiredo, incorporou o termo “irrestrita”, abrindo caminho para beneficiar no perdão os militares que cometeram crimes de tortura e assassinatos como o do deputado Rubens Paiva. Acompanhei todo esse debate pois já trabalhava como repórter no antigo Jornal do Brasil, e frequentava diariamente o Congresso. Não demorou e conseguiram incorporar um novo qualificativo: “recíproca”, consagrando de vez a impunidade de assassinos e torturadores, ao proibir investigações sobre militares. Outro dia um deles, médico do Exército, acusado de ministrar medicamentos para que os presos suportassem cargas cada vez mais pesadas de tortura, morreu em plena liberdade, beneficiado pela “recíproca”.
Visitando um pouco a história, a gente relembra que o general Teixeira Lott, então ministro da Guerra, aconselhou Juscelino Kubitscheck a não anistiar os golpistas que tentaram impedir a sua posse na presidência em 1955, e também aos líderes das revoltas de Jacareacanga (1956) e de Aragarças (1959). Também sugeriu que passasse pra reserva o general Castello Branco, conhecido por atentar contra a democracia. JK não deu ouvidos a Lott, insistiu na anistia, não pôs Castello na reserva (ele se tornaria o primeiro general-ditador) e levou o troco: teve o mandato de senador cassado em 1969. Na época, um dia depois de debelada a Revolta de Aragarças, o então senador Caiado de Castro (PTB-RJ) discursou contra a anistia aos rebelados. Há dois meses o governador de Goiás Ronaldo Caiado (União Brasil), parente dele, correndo em sentido inverso, declarou-se favorável, sabe a quem? Aos bolsonaristas rebelados do 8 de janeiro. Não aprendeu xongas com o parente.
Lá mais atrás, Getúlio Vargas anistiou o pai do general Figueiredo, o também general Euclydes Figueiredo, por ter pegado em armas contra a ditadura getulista e a favor do Estado de direito. Esta primeira anistia, como se percebe, foi a única que beneficiou apenas os que defendiam a democracia e seus princípios. Já o Figueiredo filho não aprendeu xongas com o pai, tanto que virou ditador.
Afirmar agora que os golpistas do 8 de janeiro eram apenas “vândalos” é até ridículo. Quer dizer que saíram quebrando as sedes dos Três Poderes só pela farra, pelo prazer de ver tudo em ruínas? Que não havia objetivo algum naquela sublevação? Que papo é esse? Um único exemplo derruba o argumento de Motta: o acampamento montado durante meses em frente ao QG do Exército em Brasília em defesa de uma intervenção militar. Pois foi de lá que saíram os “vândalos” de Motta. Como também daquele irresponsável que queria explodir uma bomba no aeroporto de Brasília. E mais adiante a descoberta, pela Polícia Federal, da conspiração que visava o assassinato de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes.
Hoje, no debate do tema da anistia, os especialistas lembram que passa da hora, isto sim, não de afrouxar, mas de apertar a legislação, evitando de uma vez por todas que o benefício da anistia se estenda a agentes estatais responsáveis por crimes comuns como sequestro, lesão corporal, tortura, homicídio e ocultação de cadáver. A hora é de punição exemplar, e não de perdão. Caso contrário vamos continuar assistindo a história se repetir. Porque o ódio à democracia, vicejante na educação ministrada nos quartéis, lembre-se, continua se reproduzindo. Inclusive dentro do próprio Congresso, onde há parlamentares que, com a cara mais lavada, em nome da tal de pacificação, querem mesmo é abrir espaço para a retomada do poder pela extrema direita em 2026. Simples assim.
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noticia por : UOL