Estou revendo “Vale Tudo”. É, a novela de 1988. E antes que meus amigos Jones Rossi e Omar Godoy apareçam para me xingar de comunicólogo (daqueles que andam com lenço de seda no pescoço), explico que realmente acredito que as telenovelas dos anos 1980 e 1990 ajudam a explicar – e muito – o Brasil de 2025. Mas podem dormir tranquilos, amigos: não pretendo escrever nenhum tese sobre o assunto.
Ainda estou no começo da novela e desde já uma coisa chama minha atenção em “Vale Tudo”: o autorretrato do brasileiro como um povo deplorável, incapaz de um único gesto de grandeza, e que banalizou a corrupção a ponto de incorporá-la ao seu modo de agir. Entre os mais pobres, a corrupção é praticada com a desculpa da sobrevivência. Entre os mais ricos, com a justificativa de manter privilégios ou assegurar certo sentimento de superioridade sobre a ralé.
Desesperança ressentida
Outra coisa notável na novela exibida há quase 40 anos é que (até agora, 5º capítulo e tal) ela não menciona aquele que é considerado o centro irradiador da pandemia de corrupção que assola o país: Brasília. O que é muito interessante, já que a tendência atual é culpar a política pela corrupção de que somos agentes e pacientes todos os dias.
Por fim, “Vale Tudo” chama a atenção pela visão profundamente pessimista não do Brasil, e sim do brasileiro. A novela é puro auto-ódio. Ninguém presta. Ninguém é digno de confiança. Todos querem levar vantagem em absolutamente tudo. O “jeitinho” é tão natural quanto respirar. Entre a elite, predominam os vícios mais abjetos, sobretudo o já mencionado senso de superioridade. Entre os pobres, o que predomina é a desesperança ressentida de quem tem raiva de ter nascido neste país.
Náusea
Quem assiste à novela com o olhar contemporâneo tem a impressão de que o Brasil é (sempre foi?) um inferno. Uma coisa assim meio sartreana (ref. “A Náusea”). Essa é uma narrativa reproduzida à exaustão nas últimas quatro décadas e que hoje contamina todos e cada um de nós. Basta dar uma passada pelas redes sociais para perceber que o brasileiro odeia o brasileiro. Tem nojo do brasileiro. Considera o brasileiro preguiçoso, mentiroso, aproveitador, inútil, dispensável. Um verdadeiro erro da Criação – e outros tantos adjetivos nada meritórios.
Fala a verdade. Investiga esse seu coraçãozinho patriota aí. Se o brasileiro pudesse, acabava com o brasileiro. Tudo para defender um ideal de país que é ou nostálgico (“antigamente é que era bom!”) ou inalcançável. Isto é, um Brasil d’antanho, em preto e branco, mais lento e mais seguro, sem poucas-vergonhas ou com as poucas-vergonhas bem escondidinhas do vizinho. Um Brasil que acabou, que não era nem nunca foi essa perfeição toda, e que não vai mais voltar. Nunca mais.
Isso aqui, ô, ô…
Outra curiosidade quanto a esse auto-ódio tupiniquim: o brasileiro preferia que o Brasil fosse habitado por outros povos, com outras habilidades que admiramos, idealizamos e não encontramos entre nossos conterrâneos. Ah, se o brasileiro tivesse a iniciativa de um norte-americano ou a ética de trabalho de um norueguês. Ah, se o brasileiro fosse honesto como um japonês, organizado como um alemão e culto como supostamente são os argentinos. E por aí vai.
E o brasileiro faz isso no automático, sem nem refletir. Pior: reagindo violentamente a quem aponta essa incoerência na alma dele. Com um detalhe: o brasileiro se odeia sempre se colocando à parte. Repara! É como se o brasileiro, sempre tão crítico de seu semelhante, vivesse à margem do país, apenas observando e sem jamais se misturar e esse povo primitivo, mal-educado e desonesto, que sempre quer levar vantagem tudo, garantir o seu e o resto, ah, o resto que se dane.
Quando, na realidade, a gente faz parte disso. Não dá para negar! A gente faz parte dessa corrupção toda que nos causa tanta indignação, revolta e, insisto, auto-ódio. Aliás, esse talvez seja o maior mérito de “Vale Tudo”: mostrar que o Brasil não se restringe às safadezas palacianas. O Brasil é a soma dos esforços de todos os brasileiros. Dos trambiqueiros de todos os quilates, claro, mas também dos que se esforçam para ganhar honestamente a vida. Sim, eles existem.
noticia por : Gazeta do Povo