4 de fevereiro de 2025 - 18:44

O que está por trás da selvageria das torcidas organizadas em Pernambuco

As cenas de selvageria ocorridas no último fim de semana em Pernambuco chocaram o país. Por volta do meio-dia, mais de quatro horas antes da partida entre Santa Cruz e Sport pelo Campeonato Pernambucano, torcedores organizados da Inferno Coral e da Jovem do Leão se enfrentaram nas ruas dos bairros da Torre e da Madalena, a mais de quatro quilômetros do Estádio do Arruda.

As imagens que circularam pelas redes sociais mostravam uma batalha campal, com grupos armados de paus, pedras e bombas caseiras, digladiando-se em vários pontos da cidade, e policiais atuando de maneira errática para tentar reprimir as massas. Entre as cenas mais chocantes, um integrante da Torcida Jovem é atacado por um grupo de torcedores da Inferno Coral. Depois de ser espancado, o homem é despido e estuprado com um pedaço de madeira.

O confronto levou muitos estabelecimentos a fecharem as portas às pressas. Houve casos de depredação de patrimônio público e privado. Pelo menos 13 pessoas deram entrada na emergência médica e uma delas permanece internada até agora.

A Secretaria de Defesa Social do Governo do Estado de Pernambuco se pronunciou oficialmente sobre o ocorrido poucas horas depois. O responsável pela pasta, Alessandro Carvalho, afirmou que “não houve falha no policiamento”. Cerca de 654 homens foram mobilizados para fazer a segurança no perímetro. Ao final dos eventos de domingo, 14 pessoas haviam sido presas. Antes do jogo, cerca de 650 foram conduzidas até o Batalhão de Choque e passaram por revista, sendo acompanhadas até o local da partida.

A rápida circulação das imagens de brutalidade saturaram a percepção pública dos brasileiros a respeito do crescimento da violência e da criminalidade. O estupro seguido ao linchamento de um torcedor levou muita gente a questionar se o fenômeno das brigas de torcida organizada não estaria evoluindo, fosse por influência de facções criminosas, fosse por uma degradação mais acentuada da moralidade e da impunidade. A ocasião possibilita uma análise mais detalhada do fenômeno, considerando os procedimentos utilizados pelas autoridades e o que poderia ser implementado para atingir maior eficácia no controle e prevenção de eventos análogos.

Tribalismo primitivo

É verdade que os acontecimentos do final de semana chocaram muita gente, mas, a bem da verdade, não trouxeram grande novidade para o cenário atual. Em 2024, no Recife, houve casos de ataques entre torcidas rivais mesmo em dias de jogo em que os times não se enfrentavam, inclusive com mortes violentas. Durante a pandemia da COVID-19, até em jogos com portões fechados houve registros de brigas entre as torcidas nas ruas da capital pernambucana. Os registros de brigas de torcidas no estado datam de pelo menos 30 anos. É uma longa história de brutalidade, violência e ódio.

Em parte, ela parece ter ligação com a dinâmica mesma dos eventos de massa de caráter esportivo. A combinação de disputa agônica entre times adversários, emoções em alta e ajuntamento de grandes massas tem produzido efeitos violentos há milênios.

Existem registros históricos de confrontos violentos entre facções de torcedores na Roma Antiga. Um exemplo relatado pelo historiador Tácito em seus “Anais” ocorreu em 59 d.C., durante os jogos gladiatórios em Pompeia. Nessa ocasião, uma disputa entre habitantes locais e visitantes de Nucéria se transformou em um tumulto generalizado, resultando em vários feridos e mortos. A gravidade do incidente teria levado o imperador Nero a proibir tais espetáculos em Pompeia por uma década.

Durante o Império Bizantino, especialmente nos séculos V e VI d.C., as corridas de bigas no Hipódromo de Constantinopla eram acompanhadas por facções de torcedores conhecidas como “Azuis” e “Verdes”. Esses grupos frequentemente entravam em confronto, culminando na Revolta de Nika em 532 d.C., que resultou em milhares de mortes e destruição significativa na cidade.

A psicologia das multidões demonstra que ajuntamentos produzem efeitos negativos sobre a psique individual de muita gente. A proximidade excessiva pode gerar um estado de alerta que distorce a percepção da realidade, transformando estímulos neutros em potenciais ameaças.

O contágio emocional faz com que sentimentos como medo, raiva e euforia se espalhem rapidamente, levando a comportamentos coletivos que os indivíduos dificilmente manifestariam de forma isolada.

A sensação de anonimato em multidões contribui para a diminuição do medo de punição, encorajando comportamentos de risco e aumentando a vulnerabilidade a líderes manipuladores. A presença de álcool e outras drogas reduz a inibição e prejudica a tomada de decisões racionais, facilitando a adoção de comportamentos impulsivos e agressivos. Esses mecanismos podem levar à diluição da identidade individual, suprimindo valores pessoais em prol das emoções coletivas, e à perda da moralidade, reduzindo a censura interna e permitindo a manifestação de impulsos primitivos.

Em contextos de disputas esportivas, tudo isso facilita a assunção de comportamentos tribais. A identidade coletiva de um grupo se reforça pela rejeição violenta do adversário em comum. Os sentimentos de companheirismo mútuo fortalecem a ligação entre os sujeitos. A violência opera como uma estimulação sensorial reforçada por sentimentos de poder, domínio e triunfo. Para jovens com baixos níveis de autocontrole, a intensidade emocional envolvida exerce efeito catártico.

Esse caldo psicológico é explorado com maestria por líderes de torcida organizada em todo o mundo. O fenômeno organizacional se tornou um negócio especializado para muita gente. As grandes torcidas organizadas brasileiras movimentam milhões de reais todos os anos, demonstrando profissionalismo em sua gestão financeira, organização logística e espetacularização dos eventos esportivos. Devido ao seu nível de organização e ao fanatismo dos seus associados, sua influência política não tem se restringido somente à direção de clubes esportivos e jogadores, mas se faz sentir a cada dois anos nas eleições municipais, estaduais e nacionais.

Inevitavelmente, a mistura de comportamento tribal, emoções intensas, uso abusivo de álcool e outras drogas, dinheiro e política funciona para atrair todo o tipo de delinquente para essas organizações. Esses indivíduos trazem para as organizações os hábitos adquiridos em outros metiês, incluindo quadrilhas, facções criminosas e prisões.

Vários deles têm interesse financeiro diretamente envolvido, operando com tráfico de entorpecentes ou aproveitando-se dos eventos esportivos para roubar. Quase todos se envolvem emocionalmente com a coisa, com uma intensidade agravada pela desordem típica dessas personalidades desviantes.

Não é raro que a rivalidade entre grupos se intensifique pela ação de “galeras regionalizadas” em cada torcida, com a sucursal de uma organizada em um bairro reproduzindo as mesmas rivalidades contra a sucursal de outra organizada de um bairro vizinho que se verificam em torno da disputa do controle pelo tráfico de drogas.

No caso de psicopatas, levados por impulsos inerentes na busca por emoções intensas e ocasiões em que possam exercer crueldade sobre suas vítimas, é provável que organizações frouxamente estruturadas como essas e sem controles efetivos sobre seus membros possam ser particularmente atrativas.

Contenção de danos

O fenômeno de brigas de torcida organizada tem sido objeto de preocupação em vários países do mundo. Nas últimas décadas, a Europa tem feito um esforço concertado para garantir maior segurança nos eventos esportivos, adotando um conjunto de medidas que incluem mudanças estruturais, reforço no policiamento, introdução de novas tecnologias e legislação mais rigorosa, como as Football Banning Orders (FBOs).

Essas ordens judiciais foram criadas no Reino Unido para coibir a violência no futebol, proibindo torcedores problemáticos de frequentar jogos e, em alguns casos, obrigando-os a entregar seus passaportes para evitar que viajem a eventos internacionais.

Desde sua implementação em 1989, as FBOs foram fortalecidas, permitindo que indivíduos fossem banidos dos estádios mesmo sem condenação criminal prévia, caso houvesse indícios de comportamento violento. Esse endurecimento das regras foi uma resposta a décadas de hooliganismo, especialmente nos anos 1980, quando a violência nos estádios atingiu níveis alarmantes.

Além da legislação, mudanças estruturais nos estádios desempenharam um papel crucial na redução da violência. A remoção de alambrados foi uma das primeiras e mais significativas alterações, implementada após tragédias como a do estádio de Hillsborough, em Sheffield, na Inglaterra, onde 97 pessoas morreram pisoteadas devido à superlotação e à falta de rotas de escape.

A partir dessa mudança, as autoridades passaram a priorizar um modelo mais seguro, com áreas abertas que permitissem evacuações rápidas em caso de emergência. Outra medida essencial foi a introdução de assentos numerados, substituindo setores onde torcedores assistiam aos jogos de pé, o que reduziu aglomerações descontroladas e facilitou o monitoramento de torcedores suspeitos.

O controle de acesso aos estádios foi aprimorado com a implementação de ingressos personalizados, onde cada bilhete é nominal e intransferível, dificultando a revenda ilegal e permitindo que autoridades identifiquem previamente torcedores considerados de risco. Essa prática foi amplamente utilizada durante a Copa do Mundo de 2018, na Rússia, quando todos os torcedores precisavam apresentar um “ID de FAN”, um documento oficial vinculado ao ingresso, para entrar nos estádios. Essa medida coibiu fraudes e permitiu um monitoramento mais eficaz do público presente nos eventos.

Outro avanço no combate à violência nos estádios europeus foi a introdução de novas tecnologias. O reconhecimento facial passou a ser utilizado em diversos países para identificar torcedores banidos ou envolvidos em incidentes violentos.

Na Inglaterra, câmeras com inteligência artificial são capazes de escanear multidões e alertar as autoridades sobre a presença de indivíduos proibidos de frequentar os estádios. Essa tecnologia tem se mostrado eficiente na prevenção de confrontos, uma vez que impede a entrada de torcedores problemáticos antes mesmo que possam causar tumultos.

No policiamento, a abordagem também apresentou mudanças. O uso excessivo de forças de segurança dentro dos estádios foi substituído por stewards, funcionários civis treinados para gerenciar multidões e mediar conflitos de forma menos intimidadora. Essa estratégia visa reduzir a tensão entre torcedores e forças policiais, criando um ambiente mais seguro e controlado. Além disso, os países europeus passaram a adotar um modelo de cooperação internacional, compartilhando informações sobre torcedores violentos para evitar que participem de eventos esportivos em outros países.

E no Brasil?

No Brasil, a preocupação com a segurança nos estádios de futebol levou à implementação de diversas medidas ao longo dos anos. Um marco significativo foi a promulgação da Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003, conhecida como Estatuto de Defesa do Torcedor.

Esta legislação estabeleceu normas de proteção e defesa do torcedor, garantindo direitos relacionados à segurança, transparência na organização de eventos esportivos e acesso à informação. O Estatuto prevê, entre outras disposições, que o torcedor tem direito à segurança nos locais onde são realizados os eventos esportivos antes, durante e após as partidas. Além disso, assegura a acessibilidade para torcedores com deficiência ou mobilidade reduzida.

Em 2010, visando reforçar as medidas de segurança e coibir a violência nos estádios, foi sancionada a Lei nº 12.299, que alterou o Estatuto do Torcedor. Essa lei ampliou o prazo de impedimento para torcedores envolvidos em atos de violência, estendendo sua incidência a atos praticados em datas e locais distintos dos eventos esportivos, e instituiu novas hipóteses de responsabilidade civil objetiva de torcidas organizadas.

Diversos estados brasileiros criaram delegacias e fóruns especializados para lidar com o problema. Em muitos locais, torcedores previamente condenados por crimes de violência ganham permissão para sair da prisão sob exigência de cumprimento de medidas cautelares, que podem incluir ter que se apresentar no fórum no dia e horário da partida, ficando lá até o final, uma forma de garantir que esteja ausente das grandes aglomerações.

A Justiça também tem procurado exercer punições sobre os clubes, que por vezes perdem o mando de campo ou são obrigados a realizar partidas de portas fechadas, como uma forma de induzir mudanças de comportamento nas torcidas organizadas.

Outras medidas mais drásticas tem incluído até mesmo a decretação da extinção de torcidas organizadas, ainda que sem muita eficácia.

Foi o que aconteceu em Pernambuco em 2020, quando uma decisão judicial determinou a extinção da Torcida Jovem do Sport, da Inferno Coral (Santa Cruz) e da Fanáutico (Náutico). Com o decreto, seus CNPJs foram cancelados e suas sedes foram obrigadas a encerrar as atividades. No entanto, a proibição e o fechamento formal das torcidas não foram suficientes para conter a violência. Atuando de forma descaracterizada e sem identificação oficial, os grupos continuaram protagonizando episódios de brigas nas ruas do estado.

Em muitos locais, as polícias também tem apresentado um maior nível de maturidade, incluindo articulação com as torcidas organizadas, que são obrigadas a apresentar previamente um plano de deslocamento da massa de torcedores. Nessas ocasiões, os policiais se mobilizam em escolta, para garantir que não haja encontro entre aglomerações rivais.  

Por que não tem dado certo

Infelizmente, não dispomos de estatísticas confiáveis para medir a evolução ou involução das brigas de torcidas organizadas no Brasil. É forçoso reconhecer que a avaliação pela percepção pública costuma se contaminar por vieses, mas a perpetuação do fenômeno, mesmo com as medidas implementadas, é um sinal preocupante de falta de controle.

É possível que a falta de implementação de certas iniciativas contribua para uma menor eficácia da legislação vigente sobre o tema. Os clubes brasileiros tem exercido pressão política para não implementar o ingresso nominal, que permitiria uma identificação prévia de torcedores e um controle da entrada de indivíduos violentos previamente identificados. A implantação de sistemas de videomonitoramento com reconhecimento facial tem avançado em muitas cidades, mas ainda há limitações materiais e mesmo de gestão dos sistemas que dificultam seu pleno aproveitamento.

Em Pernambuco, por exemplo, o tema do ingresso nominal já foi ventilado algumas vezes, sendo sempre abafado pela política baixa que envolve legisladores, dirigentes esportivos e o comando das organizadas. Depois dos eventos do último sábado, a promessa de medidas assim foi reiterada novamente pelas autoridades. Espera-se os políticos no comando da segurança sejam capazes de superar a fraqueza histórica que os tem impedido de exigir mudanças estruturais para os grandes clubes e monitorar sua aplicação.

Por outro lado, existem problemas de descontinuidade das políticas de segurança, que prejudicam sua eficácia. Não está claro ainda se houve falhas na gestão das forças policiais durante os eventos do último sábado, mas começam a aparecer indícios preocupantes. A Torcida Inferno Coral se pronunciou oficialmente alegando que haviam se comunicado previamente com as autoridades sobre o trajeto a ser seguido para o estádio, tendo havido mudança sem comunicação prévia pelas polícias. Isso teria contribuído para o encontro de torcidas rivais em determinados locais, levando a um confronto.

o vazamento de um relatório da Delegacia de Polícia de Repressão à Intolerância Esportiva (DPRIE), alertando a Secretaria de Defesa Social a respeito do monitoramento de determinados integrantes das torcidas organizadas, que estavam se preparando para um confronto intenso no dia, evidencia incompetência na gestão da segurança do evento.

Em situações assim, o monitoramento prévio de delinquentes pode ser um instrumento extremamente útil, mas precisa ser complementado com medidas efetivas. Essas podem incluir visitas prévias da polícia para pessoas que postaram planos de agir contra a lei, de modo a pedir explicações e passar a ideia de vigilância, até banimento preventivo dos estádio, em pedido para a Justiça.

Existe também um problema de leniência do sistema de justiça criminal que certamente contribui para a perpetuação do fenômeno. A intensidade das penas envolvidas em casos de violência desse tipo permanece muito aquém do padrão de países civilizados, principalmente tendo em vista a progressão de pena. Se um condenado recebe cinco anos de prisão por lesão corporal grave, poderá solicitar progressão para o regime semiaberto após cumprir dez meses (1/6 da pena). Se o caso for de lesão corporal gravíssima, com pena de oito anos, poderá ir para o semiaberto após um ano e quatro meses. Se o caso for de lesão corporal seguida de morte, a pena prevista pode chegar a 12 anos de reclusão, podendo sair do regime fechado após dois anos.

Comparativamente, para se ter uma ideia do que isso significa, um hooligan na Inglaterra, na Alemanha ou nos Países Baixos pode pegar prisão perpétua em caso de agressão que leve à morte de alguém. A diferença de intensidade é tão gritante que prejudica qualquer parâmetro de comparação.

Após os confrontos do último sábado, o Governo do Estado divulgou que somente 13 pessoas foram detidas, tendo suas prisões convertidas em preventivas. O baixo número de prisões chama a atenção, dada a quantidade de pessoas envolvidas, que podem ser identificadas por imagens amplamente disponíveis. O fato deveria ter mobilizado mais atenção das forças policiais durante o evento. E exige a mobilização posterior, com investigação célere para punir todos os indivíduos identificados. A redução da sensação de impunidade é essencial para dissuadir comportamentos futuros dessa espécie.

Em outro exemplo negativo, o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE) derrubou a proibição imposta pelo Governo do Estado de Pernambuco para a presença da torcida nos próximos cinco jogos dos Sport Club do Recife e do Santa Cruz Futebol Clube. Para contrabalancear a concessão, o desembargador responsável exigiu que os clubes implementem a biometria e o controle facial até 1º de março de 2025, com multa de R$ 100 mil por partida em caso de descumprimento. Cabe recurso na decisão.

Eduardo Matos de Alencar é escritor, sociólogo e analista político, presidente do Instituto Arrecife, e autor do livro “De quem é o comando? — O desafio de governar uma prisão no Brasil”.

noticia por : Gazeta do Povo

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