A cultura woke costuma cobrar caro por supostos erros cometidos no passado, e a nova vítima dessa memória implacável é a atriz Fernanda Torres.
A artista de 59 anos viralizou nas redes no último fim de semana graças a um post que recupera um antigo quadro de humor do Fantástico, “Sexo Oposto”. No esquete, gravado em 2008, ela interpreta uma empregada doméstica e aparece usando maquiagem para parecer negra — uma prática conhecida como blackface.
Surgido nos EUA no século 19, esse expediente era usado em espetáculos teatrais em que artistas brancos faziam piadas com pessoas de cor, reforçando estereótipos da época. Hoje o blackface é sinônimo de racismo, e pode resultar no “cancelamento” de celebridades como a protagonista do filme “Ainda Estou Aqui”.
Na noite de domingo (26), Fernanda divulgou um longo pedido de desculpas, publicado inicialmente pelo site americano Deadline, referência na cobertura do mundo do entretenimento.
“Eu sinto muito por isso. Estou fazendo esse comunicado pois creio ser importante tocar nesse assunto e evitar mais dor ou confusão”, disse a atriz.
Fernanda Torres alegou ignorância para se eximir de culpa: “Na época, apesar dos esforços dos movimentos negros, a consciência sobre a história do racismo e o simbolismo do blackface ainda não eram tão conhecidos (…) Me mantenho atenta e comprometida com a busca por mudanças vitais para que possamos viver em um mundo livre de desigualdades e racismo.”
Episódio expõe as contradições da cultura woke
A controvérsia, no entanto, continuou mesmo após a retratação pública da artista — vencedora do Globo de Ouro e indicada ao Oscar deste ano por “Ainda Estou Aqui” (coprodução da Globoplay com a Sony Pictures).
Nas redes sociais, muitos repudiaram a nota de Fernanda Torres. Para essa parte do público, a atriz minimizou a trajetória do movimento negro, que já era forte e atuante quando o esquete cômico foi ar.
Fernanda também foi criticada por enviar seu pedido de desculpas diretamente para o Deadline, veículo conhecido por seu alcance dentro da indústria do cinema e que costuma ser citado por produtores, atores e outros jornalistas.
Ou seja: usou um espaço estratégico para se manter no páreo pelo Oscar num momento em que Hollywood se mostra sensível a questões relacionadas à diversidade e à inclusão.
Entre os brasileiros mais ufanistas, houve quem bancou o teórico da conspiração, atribuindo à Netflix a criação de uma campanha difamatória contra Fernanda e “Ainda Estou Aqui”.
Explica-se: a plataforma de streaming é produtora de “Emilia Pérez”, longa que concorre com a produção brasileira em três categorias do Oscar (Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz). Nas duas últimas, os dois filmes têm chances razoáveis de vencer.
Por fim, os críticos do politicamente correto apontaram a ironia do episódio. Afinal, Fernanda Torres, hoje um ícone do progressismo na classe artística do Brasil, virou alvo da própria militância da qual faz parte.
Ator negro teve de se explicar por supostamente apoiar o blackface
Nos últimos anos, várias personalidades foram julgadas pelo tribunal woke por estarem associadas de alguma forma à prática do blackface.
O caso mais notório é o do primeiro-ministro progressista do Canadá, Justin Trudeau. Em 2019, a revista Time divulgou uma foto em que ele aparece com uma maquiagem para escurecer a pele, numa festa com tema árabe.
O evento aconteceu em 2001, quando o assunto ainda não era muito discutido, mas Trudeau se viu obrigado a pedir perdão mesmo assim. “Estou chateado comigo mesmo. Sinto muito por isso. Foi uma coisa idiota de se fazer”, afirmou.
O jogador de futebol francês Antoine Griezmann enfrentou represálias mais severas, pois fez blackface já na era do cancelamento. Foi em 2017, quando ele pintou o corpo de preto para parecer uma estrela do basquete em uma festa estilo anos 80.
“Tenham calma. Sou fã dos Harlem Globetrotters [famoso time americano que viaja o mundo fazendo exibições performáticas] e esta é uma forma de fazer uma homenagem”, disse Griezmann num primeiro momento.
A pressão, contudo, continuou, e o atleta do Atlético de Madri também fez um mea culpa: “Reconheci que foi insensível da minha parte. Peço desculpa se ofendi alguém.”
Em 2020, a atriz Zoe Saldaña se desculpou por interpretar a cantora Nina Simone numa cinebiografia, lançada quatro anos antes. A produção optou por escurecer sua pele na caracterização, o que rendeu acusações de racismo ao filme.
“Eu nunca deveria ter interpretado Nina. Deveria ter tentado tudo o que estava ao meu alcance para escolherem uma atriz negra”, disse Saldaña, que tem origem latina.
Há casos mais radicais, como o da cantora Katy Perry, que decidiu retirar de circulação dois itens de sua marca de calçados após ativistas apontarem semelhanças entre o design dos sapatos e as pinturas blackface.
Ou o episódio envolvendo o ator negro David Harewood, mais conhecido pela série “Homeland”. No ano passado, em uma entrevista ao jornal The Guardian, ele afirmou que os atores deveriam ter a liberdade de interpretar qualquer papel, independentemente de sua identidade — e isso incluía até o personagem Otelo, de Shakespeare, historicamente vivido por brancos usando maquiagem.
Imediatamente, a patrulha politicamente correta o acusou de apoiar o blackface. Detalhe: um ano antes, Harewood havia apresentado um programa sobre o assunto na tevê britânica.
“Meu próprio documentário pode ser encontrado no site da BBC. O blackface é uma distorção grotesca de raça e deve ser sempre condenado”, afirmou.
noticia por : Gazeta do Povo