24 de janeiro de 2025 - 17:13

A Inteligência Artificial no trabalho intelectual e criativo: ajudante ou substituto?

Para começar a escrever este artigo, eu poderia ter pedido ao Chat GPT um parágrafo inicial, ou dois, ou que escrevesse o texto inteiro. E, provavelmente, seria um texto muito aceitável que, com alguns pequenos ajustes, seria difícil identificar como escrito por uma IA. Mas, além das implicações éticas, o que está em jogo quando delegamos nossas capacidades intelectuais e criativas às ferramentas de inteligência artificial?

Em um artigo para o Public Discourse, Timothy Burns, professor de Ciências Políticas na Universidade de Baylor, argumenta que as profissões que destroem as costas e enegrecem os pulmões são exercidas por pura necessidade, e que aqueles que realizam esse tipo de atividade alimentam a esperança de que seus filhos não precisem fazê-lo. Por isso, esses trabalhos são delegados de bom grado às máquinas. “Mas, o que acontece com as atividades que cultivam a mente e enriquecem a alma?”, pergunta Burns. “Não deveríamos parar antes de cedê-las também às máquinas?”.

Uma área em que isso preocupa especialmente é a educação, particularmente a universidade. Burns cita o caso de alunos tendo que elaborar um discurso: “Dizer aos estudantes para deixar a IA fazer seu trabalho, ou parte substancial dele, significará que nunca aprenderão gramática, nem como escrever uma frase convincente e cativante, nem como conquistar um público através da persuasão”. O acadêmico explica que se uma habilidade não é cultivada, se perde. Portanto, substituir com IA a prática de uma habilidade resultará em uma “desesperada dependência” dessa tecnologia.

A escrita foi tão disruptiva quanto a IA

Embora possa parecer loucura, a invenção da escrita pode ter sido tão disruptiva quanto a da IA. José Ignacio Murillo, diretor do grupo Mente-Cérebro do Instituto Cultura e Sociedade (ICS) da Universidade de Navarra, explica que já os filósofos gregos consideraram as vantagens e desvantagens dessa nova tecnologia: “O perigo que Platão via era que, se as pessoas confiassem na escrita, perderiam a memória”. No entanto, “agora a consideramos uma técnica importantíssima para a formação cultural”. Javier Bernácer, neurocientista do ICS, acrescenta que, de fato, “a escrita nos ajuda a memorizar mais e melhor”.

“O exclusivo do ser humano é a capacidade de conhecer intelectualmente, a IA só pode simulá-lo”

Murillo aponta para os mecanismos de busca como um precedente, já que são uma forma de IA, como um filtro que acelera e simplifica processos de trabalho. O salto que se deu com a inteligência artificial generativa é que ela nos oferece produtos que parecem elaborados por um ser humano: textos, imagens, fotografias… “Nós nos deparamos com um resultado que parece o produto de uma inteligência e que pode ser usado como tal”. Bernácer ressalta que “o exclusivo do ser humano é a capacidade de conhecer intelectualmente: abstrair, universalizar… A IA não pode fazer isso, apenas simulá-lo”.

Na universidade, Bernácer colocou seus alunos para experimentar com o Chat GPT para resumir um texto. Alguns pediam à IA para resumir novamente o texto sem deixar de fora nenhuma ideia importante. “Esta é a chave: o Chat GPT não sabe o que é importante, apenas está simulando”, indica o professor. Como o resultado, o produto que obtemos é defeituoso. Só quem tem experiência em abstrair de um texto as ideias fundamentais poderá determinar se o que a IA fez está bom ou que ajustes precisa.

“Use it or lose it”

É aqui que entra uma máxima que se cumpre em nosso sistema nervoso: use it or lose it (use-o ou perca-o): “Se alguém delega as funções intelectuais e criativas a um algoritmo, e não as cultiva de nenhuma outra maneira, elas vão se atenuando”, explica Bernácer. Para Burns, “o consumo de IA, em vez de ampliar e aprofundar o pensamento dos alunos, atrofiará suas mentes diminuindo a capacidade de pensar e raciocinar por si mesmos”. Por isso, Bernácer aponta que “usar processos automáticos e delegar à IA está muito bem quando você já desenvolveu essa habilidade” previamente.

“O incrível avanço da IA evidencia que são necessários seres humanos com melhor e maior critério”

No entanto, o desafio que os professores enfrentam é convencer os alunos de que é importante adquirir essas habilidades: redigir, resumir, analisar, contrastar… E ensinar a fazê-lo. Pois só quem domina essas questões pode utilizar a IA de forma que potencialize suas capacidades. “O incrível avanço da IA evidencia que são necessários seres humanos com melhor e maior critério, que saibam distinguir se esse output da IA está correto ou incorreto”, explica Bernácer. “No melhor dos casos, os alunos revisam [o que o Chat GPT faz], mas na maioria dos casos, nem isso.”

Por sua vez, Burns alerta que “a presunção é que [o texto elaborado pela IA] será superior a qualquer coisa que os estudantes possam ter redigido”, o que contribuirá para “a homogeneidade sem alma que caracteriza grande parte do mundo moderno”. Murillo tem claro que é preciso evitar que a tecnologia dilua a pessoa e buscar que o uso que fazemos dela possa ser personalizado: “que você seja você mesmo e que seja reconhecido como quem é; que sua contribuição seja sua contribuição”.

Delegar para potencializar o essencialmente humano

Se voltarmos a olhar para trás, a história nos mostra que delegar certos processos é algo que vínhamos fazendo há muito tempo. “Tomás de Aquino tinha vários secretários para quem ditava – diz Murillo. Ele pôde escrever tantas obras quanto escreveu porque para cada um ditava uma coisa diferente. Isso agora podemos fazer tecnologicamente”. Delegar tarefas técnicas e otimizar processos automáticos “pode ajudar a empregar nossa capacidade intelectual melhor”, concorda Bernácer.

A irrupção da IA, como já aconteceu com outras tecnologias, obriga a considerar o que é essencialmente humano e o que pode ser delegado às máquinas. Murillo pensa que a chave está nos fins: “Se tivéssemos mais claro o que queremos e em que consiste o verdadeiro desenvolvimento humano, provavelmente desenvolveríamos tecnologias que não o atrapalham”, mas sim o potencializam.

Colocando ênfase na criação artística e intelectual, que “enobrece e embeleza nossas vidas” e que “nos oferece uma visão profunda sobre a condição humana”, Burns pergunta: “Queremos realmente deixar nas mãos das máquinas nossa capacidade de pensar, inventar, descobrir e redescobrir?”.

noticia por : Gazeta do Povo

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