22 de janeiro de 2025 - 19:01

Acusações de machismo expõem os bastidores da elite cultural progressista

Uma parte da elite cultural de esquerda mergulhou em uma guerra civil nos últimos dias.

A controvérsia, que envolve um pequeno grupo de intelectuais do meio literário, começou com um caso de infidelidade conjugal ocorrido há 14 anos, evoluiu para acusações de machismo e reacendeu discussões sobre a hipocrisia da ideologia woke.

No centro do debate está a escritora e jornalista Vanessa Barbara, colunista da edição internacional do New York Times e ex-colaboradora de veículos como Piauí, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo

Em uma edição do podcast Rádio Novelo Apresenta, lançada no último dia 16, ela conta em detalhes os eventos que resultaram no fim de seu casamento com André Conti, um dos sócios da editora Todavia (cujo principal autor nacional é Itamar Vieira Junior, do best-seller “Torto Arado”). 

A narrativa, que descortina uma série de traições cometidas por Conti, chamou a atenção do público devido uma informação em especial: segundo Vanessa, o ex-marido relatava suas “escapadas” em uma lista de e-mails (espécie de grupo de WhatsApp da época) da qual participavam figuras de proa do mercado editorial. 

“Vou procurar contar a história dessa minha cicatriz da forma mais direta possível. Ela envolve 15 homens brancos em posições de poder, jornalistas e escritores de um certo renome. Ou seja, gente que atua na mesma área profissional do que eu”, afirma a autora, que invadiu a conta do parceiro após perceber alguns comportamentos suspeitos. 

De acordo com Vanessa, André Conti debochava dela nas conversas com os amigos — que também faziam comentários ofensivos sobre várias mulheres (incluindo as próprias esposas e namoradas). Alguns deles chegaram a combinar histórias para encobertar o caso extraconjugal de Conti com outra escritora da patota. 

“Eles se conheceram num acampamento de organizações populares autônomas no interior de São Paulo. Ela era militante de um movimento que lutava pelo passe livre”, diz Vanessa Barbara. 

Apesar de Vanessa usar pseudônimos em seu relato, os ouvintes do podcast rapidamente juntaram as peças do quebra-cabeça. E, no dia seguinte à veiculação do programa, já circulavam pelas redes montagens com fotos de todos os envolvidos. 

Entre eles, nomes conhecidos da literatura e da imprensa, como Daniel Galera, Michel Laub, Paulo Scott, Joca Reiners Terron e Natércia Pontes (pivô da separação do casal). 

“Esquerdomachos” da literatura se desculpam nas redes sociais

O motivo maior da indignação do público, contudo, não foi a humilhação sofrida por Vanessa — ou “violência psicológica”, como ela define. Tampouco tem relação com a existência de ambientes virtuais fechados em que marmanjos soltam piadas e memes impublicáveis.

A bronca diz respeito ao perfil dos 15 amigos: todos de esquerda e politicamente corretos, sempre dispostos a “descontruir sua masculinidade” quando a causa feminista é ameaçada. 

Ou, como se diz no jargão da internet, “esquerdomachos” (homens que projetam uma imagem progressista, mas cujas atitudes no âmbito pessoal revelam uma faceta machista). 

Preocupados com o cancelamento instantâneo, praticamente todos os participantes do extinto grupo de e-mails foram às redes para se explicar ou pedir desculpas. 

“Manipulei e coagi minha ex-esposa de forma machista e misógina. Tive quase 15 anos para refletir sobre o que aconteceu. Esse adultério, e a rede de mentiras que criei em torno dele, terminou por afetar a vida de dezenas de pessoas”, disse André Conti. 

“De 14 anos para cá muita coisa mudou: eu mesmo, o mundo, a forma como as relações de gênero são tratadas (…) Quanto às imputações de crimes, estou fazendo prints e decidirei que medidas tomar a respeito”, afirmou Michel Laub, escritor traduzido em 12 idiomas e colunista do jornal Valor Econômico

“Sei bem o quanto minha masculinidade precisa ser diariamente desconstruída (uma parte das minhas poesias sempre externou isso) (…) Quem tem o privilégio de gênero (ou de raça) tem obrigação de buscar desfazer a cegueira que os seus privilégios lhe trazem”, disse Paulo Scott, autor, entre outros livros, do premiado “Marrom e Amarelo” (2019), sobre as relações raciais no Brasil.

Até a editora Todavia, da qual Conti é um dos donos, emitiu uma nota. “Compreendemos a indignação causada pelos diversos exemplos de machismo e misoginia. Sentimos muito, sobretudo, pelo sofrimento causado à vítima. No momento, buscamos garantir a manutenção de um espaço de acolhimento para nossas colaboradoras e colaboradores.” 

Feministas criticam escritora que defendeu o marido 

Mas nenhuma resposta causou tanta celeuma quanto a publicada por Natércia Pontes em sua conta na plataforma Substack. Casada há 14 anos com André Conti, com quem tem duas filhas, a escritora saiu em defesa do marido — o que enfureceu as feministas mais combativas.

“Ele tinha um grupo machista de amigos com quem desabafava, falava mal dos outros e de assuntos variados e ria. Hoje tenho grupos de mulheres e homens com quem desabafo, sou cruel, falo mal dos outros e rio. Quem nunca?”, diz Natércia, autora do romance “Os Tais Caquinhos” (2021). 

Ela também acusa Vanessa Barbara (que já havia narrado o episódio de sua separação no livro “Operação Impensável”, lançado em 2014 e vencedor do Prêmio Paraná de Literatura) de ainda hoje tentar manter contato com Conti, para pedir ajuda com a carreira.

“Em pouco mais de seis meses, o que mudou no caráter do destinatário do último e-mail, datado do dia 17/6/2024, e o monstro que ela pinta no podcast? (…) Por que seis meses depois deste doce pedido de favor (foram muitos) e elogios à pessoa do meu marido viraram um ataque cretino, com direito a uma rajada de metralhadora da moralidade?”

No campo de comentários sobre o texto Natércia, intitulado “Prefiro ser ré a ser juíza”, o público não a perdoou. 

“É muito típico do patriarcado a briga entre mulheres para defender o homem. Logo ele, pessoa maior de idade, capaz e bem-sucedido”, escreveu uma leitora.

“Que triste esse texto, quanta violência contra outra mulher. Devastador ver que o patriarcado segue vencendo todos os dias, nunca estaremos livres”, disse outra.

Pelo menos até aqui, a audiência parece ter ficado mesmo do lado de Vanessa Barbara. Segundo um levantamento feito pela Amazon, a pedido da Folha de S. Paulo, as vendas dos três livros da autora cresceram 13,8 mil% desde o início da controvérsia (o site não divulgou os números absolutos).

Episódio evidencia o caráter elitizado da bolha cultural brasileira 

Além das questões pessoais e da “discussão de gênero”, a história contada por Vanessa Barbara traz outra camada embutida: ela expõe o caráter restrito dos círculos artísticos e intelectuais brasileiros, majoritariamente formados por herdeiros de gente influente. 

André Conti, por exemplo, é filho de Mario Sergio Conti, que chefiou algumas das maiores redações da imprensa nacional e hoje apresenta um programa na GloboNews

O pai de Natércia Pontes, Augusto Pontes (1935-2009), foi uma figura importante na cena cultural do Ceará, chegando inclusive a ocupar o cargo de secretário em um dos governos de Ciro Gomes. 

A Todavia, editora da qual Conti é sócio, tem entre seus investidores o empresário Alfredo Setubal, filho de Olavo Setubal (1923-2008), banqueiro e ex-ministro das Relações Exteriores. O escritor Alfredo Nugent Setubal, neto de Olavo, atua como diretor financeiro do grupo. 

Guilherme Affonso Ferreira, ex-sócio da empresa de investimentos Teorema Capital (e um dos patronos da Festa Literária de Parati, a Flip), e Luiz Henrique Guerra, à época no fundo Indie, também injetaram dinheiro no projeto. 

Branca Vianna, fundadora e apresentadora da Rádio Novelo, é tataraneta do Visconde do Rio Preto (proprietário de fazendas de café no século XIX) e mulher de João Moreira Salles — cineasta, criador da revista Piauí, herdeiro do Itaú Unibanco e décimo brasileiro mais rico segundo a Forbes. Seu podcast conta com o apoio da Open Society Foundation, do bilionário progressista George Soros.

A literatura produzida pelos amigos de André Conti, no entanto, segue autocentrada e com pouco alcance. Mesmo o autor mais popular do grupo, o gaúcho Daniel Galera (um dos “esquerdomachos” apontados por Vanessa Barbara), é acompanhado apenas por um pequeno séquito de iniciados.

Seu livro de melhor recepção, “Barba Ensopada de Sangue” (adaptado recentemente para o cinema), vendeu pouco mais de 40 mil exemplares desde o lançamento, em 2012 — número que nem as intrigas expostas nas redes sociais devem impulsionar.

noticia por : Gazeta do Povo

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